quinta-feira, 1 de março de 2012

A agregação de freguesias na Proposta de Lei n.º 44/XII: um cocktail de eufemismo e demagogia?


Sumário: A Proposta de Lei n.º44/XII, do Governo, propõe o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica, obrigando a uma profunda revisão do mapa das freguesias. Conscientes da delicadeza da matéria, considerando a existência centenária, quando não milenar das freguesias portuguesas, e do profundo enraizamento identitário das mesmas junto das populações, o Governo procurou amenizar os efeitos negativos que esta reforma, por essa via, pudesse originar. Há que lembrar que a única reforma profunda que se tentou fazer do mapa das freguesias foi com a Lei da Administração Civil, de Martens Ferrão, datada de 1867, cuja aplicação foi um dos motivos da eclosão da “Janeirinha”, acabando por vigorar escassos 4 dias, e levando à queda do Governo que a aprovou.

A verdade é que o Governo, que com este diploma pretende, na verdade a redução do número de freguesias, por fusão e extinção das mesmas, usando o termo agregação de freguesias para designar, impropriamente, os mecanismos que propõe para a extinção e fusão de freguesias, não se inibindo de criar um conjunto de instrumentos jurídicos para a “preservação da identidade” das freguesias “agregadas”. Como demonstraremos, para além da má técnica jurídica que encerram, estas medidas são inócuas, e apenas revelam o eufemismo que encerra a expressão “agregação de freguesias”. Medidas demagógicas que fazem tábua rasa da participação e da entidade das populações. Mero folclore, ainda por cima mal encenado.

I - A Proposta de Lei n.º 44/XII teve grande cuidado e preocupação com a aparência de manutenção da identidade histórica das freguesias objecto de agregação, bem como dos seus naturais e habitantes.

A constituição de novas freguesias, resultantes do regime de reorganização administrativa territorial autárquica é, nos termos desta iniciativa legislativa, designada por agregação de freguesias.

Pese embora a Proposta de Lei n.º44/XII não definir, de forma clara, o conceito de “agregação de freguesias”, traz-nos no seu artigo 7.º um conjunto de elementos que nos aproximam desse conceito, e que indiciam que se trata de uma verdadeira fusão de freguesias.

O artigo 7.º da Proposta de Lein.º 44/XII prevê, em matéria de agregação de freguesias:

a)       Que as freguesias criadas por efeito de agregação têm a faculdade de incluir na respectiva designação a expressão “União de Freguesias”, seguida da denominação de todas as freguesias que nela se integram (artigo 7.º, n.º 1, alínea a);

b)      A preservação da identidade cultural e histórica das freguesias agregadas, incluindo a manutenção dos símbolos das freguesias anteriores (artigo 7.º, n.º 3);

c)       A criação de um novo órgão, nas freguesias que resultem de agregação, composto paritariamente por elementos de cada freguesia agregada, cuja designação compete à Assembleia de freguesia (artigo 7.º, n.º 1, alínea b) e artigo 8.º).

Estas três possibilidades abertas pela Proposta de Lei n.º 44/XII, pretendem fazer crer que se mantêm, no fundo, a identidade e autonomia local das comunidades que são extintas na agregação da freguesia. Em verdade não é o que se passa…

É o próprio artigo 7.º, n.º 2 da Proposta de Lei n.º 44/XII que estabelece que “a freguesia criada por efeito da agregação constitui uma nova pessoa colectiva territorial, dispõe de uma única sede e integra o património, os recursos humanos, os direitos e obrigações das freguesias agregadas”. Constitui-se, assim, uma nova autarquia local, ou melhor dizendo, uma nova freguesia (é bastante infeliz, do ponto de sistemático a opção pela expressão “pessoa colectiva territorial”), que integra um conjunto de freguesias pré-existentes, que por este acto se extinguem, sucedendo-lhe a nova freguesia em todos os seus direitos e obrigações.

E nem de outra forma poderia ser, à luz da Constituição da República Portuguesa estabelece no seu artigo 244.º que as freguesias dispõem, como órgãos, da Junta e da Assembleia de Freguesia, devendo entender-se que cada freguesia dispõe obrigatoriamente destes órgãos, sendo impossível a manutenção das mesmas enquanto autarquias locais se deles não dispuserem, ou se os órgãos forem comuns a mais que uma freguesia.

Como ensina Jorge Miranda, em anotação ao artigo 235.º da Constituição da República Portuguesa, “Por haver “interesse próprio das respectivas populações”, eles têm de ser prosseguidos por essas populações (pois são elas que melhor os poderá prosseguir, num exercício de autodeterminação). Não basta que haja órgãos locais para gerir assuntos locais, esses órgãos têm de ser constituídos democraticamente para exprimir a vontade popular local.”[1]. Esta exigência constitucional implica que cada comunidade constituída como autarquia local tenha os seus próprios órgãos, o que não verifica com cada uma das freguesias objecto de agregação.

II – O conceito jurídico “agregação de freguesias” é uma inovação no direito português, apenas se verificando a existência de um conceito próximo nos Códigos Administativos de 1870, 1878, 1886, 1895 e 1896: a anexação de freguesias/paróquias.

Esta anexação era ditada pela falta de cidadãos em número considerado suficiente para prover os órgãos das freguesias/paróquias, ou no caso de as mesmas não possuírem os necessários recursos económicos para fazer face às suas despesas.

No entanto, estas anexações eram reversíveis, se cessassem os motivos que lhes deram origem, e os bens das freguesias/paróquias anexadas seriam integrados no património da nova freguesia/paróquia, com excepção dos logradouros comuns, ou baldios, que ficariam a pertencer exclusivamente aos moradores das povoações que os usufruíam anteriormente, sendo os bens das freguesias/paróquias anexadas, que não houvessem sido alienados, devolvidos ao património da freguesia/paróquia de origem, em caso de desanexação.

Assim, o regime oitocentista das anexações de freguesias/paróquias não só tinha critérios bem definidos, como previa a sua reversibilidade, o que não encontra qualquer paralelo no regime previsto na Proposta de Lei n.º 44/XII. O regime aqui proposto é muito mais atentatório à existência em concreto de muitas freguesias, ficando-se a mesma pelas medidas já referidas de preservação da identidade das anteriores freguesias, que revelam bem o carácter eufemístico do conceito de “agregação de freguesias”.

III – A Proposta de Lei n.º44/XII prevê criação de um novo órgão da freguesia, que não é um órgão representativo da freguesia (visto que estes estão taxativamente definidos no artigo 244.º da Constituição da República Portuguesa), onde se pretende de alguma forma dar representação às freguesias agregadas (ou mais rigorosamente extintas ou fundidas), não se traduz numa efectiva garantia de autonomia das populações das freguesias agregadas.

A designação dos membros dos conselhos de freguesia compete às respectivas assembleias de freguesia (artigo 8.º, n.º 1), tratando-se de eleição indirecta e que nem sequer tem correspondência com a dimensão das freguesias integradas, antes são designados residentes de cada freguesia integrada, em igual número.

Com efeito, a Proposta de Lei n.º44/XII, ao criar o conselho de freguesia, não o dota de poderes deliberativos (e nem poderia, por violação dos artigos 239.º e 244.º da Constituição da República Portuguesa), e nem sequer de competências (fala antes, e impropriamente, de incumbências – artigo 8.º, n.º 2). Tais incumbências, ou em sentido mais próprio, competências, são de caracter consultivo e quando para além disso não envolvem o exercício de poderes administrativos.

A propor este Conselho de Freguesia, melhor seria que o Governo houvesse proposto a regulamentação das organizações de moradores, previstas nos artigos 263.º a 265.º da Constituição da República Portuguesa.

Estas estruturas, de base territorial e de dimensão inferior à freguesia em que se encontram integradas (artigo 264.º da Constituição da República Portuguesa), gozam do direito de participação, sem voto, na respectiva assembleia de freguesia (artigo 265.º, n.º 1, alínea b)) e poderão exercer as tarefas que a lei lhes confiar, ou os órgãos das freguesias neles delegarem (artigo 265.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).

Acresce ainda a legitimidade democrática destas estruturas, cuja assembleia engloba todos os residentes na respectiva área, inscritos no recenseamento da freguesia (artigo 264.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), sendo a comissão de moradores eleita por escrutínio secreto pela assembleia de moradores e por ela livremente destituída (artigo 264.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa).

Até hoje, o legislador nunca regulamentou a existência das organizações de moradores, verificando-se uma inconstitucionalidade por omissão[2]. O Governo, com a Proposta de Lei n.º 44/XII poderia e deveria ter dado o impulso legislativo para por cobro a esta situação, criando assim um novo meio de participação cidadã. A sua opção foi, infelizmente diversa, preferindo a criação deste inútil e pouco democrático conselho de freguesia.

Por outro lado, para além da dimensão de reforço da democracia participativa, a regulamentação das organizações de moradores ganharia especial relevo num cenário de redução do número de freguesias, permitindo aos cidadãos de freguesias de maior dimensão encontrar um espaço de carácter institucional de participação e defesa do seu bairro ou da sua localidade, e respectivas especificidades.

Assim, não resistimos a citar as avisadas palavras de Freitas do Amaral, referindo-se à não regulamentação legal das organizações de moradores: “E é pena. Porque despidas do seu fervor revolucionário original, e enquadradas no normal desempenho das funções administrativas necessárias de um Estado de Direito Democrático, as organizações de moradores poderiam ser bem úteis na prossecução de tarefas concretas que as câmaras municipais e as juntas de freguesia tantas vezes desprezam ou ignoram: o calcetamento de um passeio, a limpeza de um jardim, a manutenção de espaços verdes, o recreio de crianças, o alerta para infracções ecológicas ou para a degradação de casas de habitação, etc., etc..” [3]

IV – A manutenção do direito ao uso dos símbolos das freguesias anteriores pela freguesia resultante da agregação, prevista no artigo 7.º, n.º 3 da Proposta de Lei n.º 44/XII, pese embora a sua inocuidade, não pode deixar de merecer alguns reparos.

Verifica-se que o referido preceito não esclarece a que símbolos respeita, pois caso se trate de símbolos heráldicos, os mesmos obedecem a um regime especial, aprovado pela Lei n.º53/91, de 7 de Agosto, que não se coaduna com a solução encontrada.

Desde logo, o artigo 5.º da Lei n.º53/91, de 7 de Agosto, prevê a extinção automática do direito ao uso aos símbolos heráldicos com a extinção do seu titular. Ora, como já vimos supra, a agregação de freguesias implica a respectiva extinção, e não tem sentido a utilização dos mesmos por uma entidade diversa. Aliás, violaria o princípio da univocidade previsto no artigo 10.º, alínea b) da Lei n.º 53/91, de 7 de Agosto.

Por último, esta disposição no que respeita á ordenação de símbolos heráldicos sempre seria desnecessária, atenta a consideração da origem histórica da autarquia local e dos símbolos anteriormente utilizados, nos termos do artigo 19.º, n.º 1 Lei n.º 53/91, de 7 de Agosto.

V – A naturalidade, enquanto elemento de identificação de cada cidadão, constante dos documentos de identificação oficiais e dos assentos de nascimento, implica a indicação da freguesia e concelho nos termos do artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do Código do RegistoCivil.

O artigo 7.º, n.º 4 da Proposta de Lei n.º 44/XIIprevê que “o Governo regulará a possibilidade de os interessados nascidos antes da agregação de freguesias prevista na presente lei solicitarem a manutenção no registo civil da denominação da freguesia agregada onde nasceram.”

Esta alteração é inútil. Em primeiro lugar, a naturalidade define-se no momento de nascimento, momento em que a freguesia e concelho indicados no registo existiam, pelo que a sua alteração superveniente não tem, nem deve produzir efeitos quanto ao registo civil, na medida em que é um facto inalterável a existência de uma freguesia e concelho num momento concreto. Aliás, não há, na experiência portuguesa, caso de alterações desse género, pois as pessoas mantêm os dados da sua naturalidade, apesar das alterações no mapa e designação das autarquias locais. Em Viseu, por exemplo, todos os que são naturais da freguesia de Viseu Oriental, mantêm, ainda hoje, essa designação na sua naturalidade.

Por outro lado, o artigo 62.º do Código do Registo Civil consagra a inalterabilidade dos textos do registo, cujos dados apenas podem ser alterados por averbamento, sendo que o catálogo dos elementos sujeitos a averbamento ao registo de nascimento não inclui a naturalidade (como se por ventura fosse possível alterá-la).

Por tudo isto, para além de desnecessária, a formulação do artigo 7.º, n.º 4 da Proposta de Lei n.º 44/XII é infeliz e até mesmo perniciosa para os objectivos a que se propõe, na medida em que admite, ao contrário do que se prevê no Código do Registo Civil em vigor a possibilidade de alteração dos dados relativos à naturalidade por alteração da designação, por modificação territorial ou por extinção da freguesia de naturalidade.

Uma última nota para dizer que prevendo o artigo 14.º da Proposta de Lei n.º 44/XIIa fusão de municípios, e sendo os concelhos um dos elementos a constar da naturalidade, se verifica que inexiste qualquer disposição semelhante ao artigo 7.º, n.º 4 da Proposta de Lei n.º 44/XII relativamente à alteração da naturalidade em caso de fusão de municípios. Tal apenas pode significar uma de duas coisas: ou a incongruência desta Proposta de Lei, ou a descrença do Governo na fusão de municípios…

VI – A preservação da identidade das “freguesias agregadas” que o Governo pretende garantir com a Proposta de Lei n.º 44/XII mais não é, tal como a própria expressão “agregação de freguesias”, que um eufemismo destinado a maquilhar os verdadeiros objectivos que a Proposta de Lei encerra: reduzir o número de freguesias por extinção e fusão das mesmas.

Como vimos, para além de inócuas e desnecessárias, tais medidas chegam a ser mesmo contrárias aos objectivos que visam, como se verifica em relação à naturalidade para efeitos de registo civil.

Revelam ainda má técnica jurídica na sua construção, como é o caso da preservação dos símbolos das freguesias agregadas, e um completo desprezo pela democracia local, como é o caso da opção pela instituição de conselhos de freguesia, em vez de regulamentar as organizações de moradores constitucionalmente previstas.

A razão destas opções percebe-se. Como já tivemos oportunidade de referir, a existência centenária, quando não milenar e anterior à nacionalidade das freguesias, que mais não são que o velho mapa das paroquias religiosas, encerra fortes sentimentos identitários das respectivas populações.

Como também já referimos, a única reforma de envergadura aproximada que se tentou fazer ao mapa das freguesias foi a que resultou da Lei da Administração Civil, de Martens Ferrão, datada de 1867, cuja aplicação foi um dos motivos da eclosão da “Janeirinha”, acabando por vigorar escassos 4 dias, e levando à queda do Governo que a aprovou.

Soe dizer o nosso Povo que “cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém”. O Governo acautelou-se, no entanto usou de uma impressionante demagogia. Será que, mesmo demagógicas e inócuas, tais medidas serão suficientes para satisfazer a identidade individual e colectiva dos portugueses?

Ventosa, 1 de Março de 2012

Rui Costa



[1] Jorge Miranda, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Coordenação Jorge Miranda e Rui de Medeiros, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, página 446) .

[2] No sentido da inconstitucionalidade por omissão, ver Jorge Miranda, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Coordenação Jorge Miranda e Rui de Medeiros, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, página 548) .

[3] Diogo Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, Volume I, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2006, página 524.

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