segunda-feira, 11 de junho de 2012

Rui Rio, a direita autoritária e centralista e a Autonomia Local


Sumário: Rui Rio, Presidente da Câmara Municipal do Porto veio por em causa a Autonomia Local. Durante a Universidade do Poder Local, levada a cabo sob a égide da JSD, lá tratou de dizer que os Municípios endividados não deveriam ter eleições, devendo ser geridos por Comissões Administrativas. Significa isto que, perante eventuais falhas na qualidade da gestão dos autarcas, são as populações privadas da sua autonomia local. E é também uma afirmação própria da direita portuguesa: uma direita centralista e autoritária. Ciclicamente, em tempos de crise, a direita portuguesa promove movimentos centralizadores. É uma evidência que a nossa direita não é liberal, mas é autoritária… Interessa ainda, neste momento, perceber quais as causas do desequilíbrio financeiros das autarquias locais, e que caminhos percorrer para uma efectiva autonomia local. Quanto a Rui Rio é paradoxal que, referindo-se a má gestão, queira punir os eleitores e não os eleitos!


I - "Quando uma câmara está excessivamente endividada, quem vier depois a ganhar eleições não tem margem para tomar qualquer decisão política. As câmaras endividadas não deviam ter eleições, mas sim uma comissão administrativa para a gestão corrente, até estarem equilibradas", Rui Rio, 9/6/2012[1].

Esta frase foi proferida por Rui Rio, a Universidade do Poder Local, levada a cabo sob a égide da JSD, a 9 de Junho de 2012. A gravidade que esta afirmação encerra, atesta bem a natureza política de Rui Rio, e merece ser lembrada sempre que este se venha apresentar a eleições para as autarquias locais.

Mas obriga, também, a mais duas reflexões: em primeiro lugar a natureza autoritária e centralista da direita portuguesa (desde sempre), em segundo lugar as causas do estado financeiro das autarquias locais e em terceiro lugar, que modelo de avaliação e responsabilização dos autarcas.

II – Rui Rio, enquanto Presidente da Câmara Municipal do Porto, criou uma aura de seriedade e responsabilidade, afrontando instituições como o Futebol Clube do Porto e personalidades como Pinto da Costa. Mas esta seriedade é acompanhada por uma forte dose de autoritarismo e inflexibilidade, daquele que os sebastianistas da direita apreciam: austeridade e autoridade.

Tal como com Sidónio Pais, Salazar, Cavaco Silva ou Manuela Ferreira Leite, cada um à sua maneira, e com a salvaguarda das devidas diferenças ideológicas (pelo menos proclamadas), mas com esta imagem comum, Rui Rio também se tem afirmado com essa aura de austeridade e autoritarismo.

 Uma imagem que não deixa de ser feita à medida de populismos (que tantas vezes degenera em fenómenos indesejáveis), desses populismos que criam homens providenciais.

Se com o episódio do despejo da “Escola da Fontinha”, no Porto, já se tinha tornado evidente esse carácter autoritário de Rui Rio, esta afirmação sobre a autonomia local resulta numa confissão inequívoca desse carácter.

No fundo, Rio, perante os maus resultados de gestão que deveriam ser assacados aos autarcas, pretende punir as populações, e não os autarcas, privando estas da dimensão maior da autonomia local, do seu núcleo essencial: o direito de eleger e ser eleito, periodicamente, para os órgãos das suas autarquias locais.

A autonomia local, desde sempre se desenvolveu como mecanismo de afirmação das populações e de mecanismos democráticos contra o poder central e contra as classes privilegiadas, designadamente a nobreza e o clero terra tenente.

Olvidar esta natureza da autonomia local é não entender a natureza da autonomia local, e vê-la como uma mera emanação da organização do Estado. Para mim, e como já afirmei diversas vezes, a autonomia local é transcendente às próprias constituições, é uma manifestação natural da organização social, tal qual a família [2] [3] [4]. E a esta posição filosófica de fundo, bem como à posição antitética, não são estranhas as manifestações de quem opte por uma ou outra corrente. Há é que afirmar essa posição com toda a transparência, sem que se corra o risco de “por o ramo de loureiro numa porta e vender o vinho na outra”.

E é isso que faz Rui Rio, que enquanto representante da autonomia local do Porto, em consequência de uma vitória eleitoral, e da sua vontade em assumir essa representação, não se inibe de arrasar o núcleo fundamental da autonomia local. E justamente no Porto, cidade cujo Povo sempre foi um cioso zelador da sua autonomia local. Fosse coerente, e nunca se tivesse candidatado! Ou pelo menos, face a esta sua legítima posição, que se demitisse, visto que não se revê na natureza das funções para as quais foi eleito.

III – A autonomia local, considere-se ou não como um elemento de Direito Natural, transcendente à própria constituição, é um valor defendido ao longo dos séculos enquanto emancipação das populações face ao Estado[5].

Alexis Tocqueville, essa referência do liberalismo, enalteceu a autonomia local nos Estados Unidos da América, enquanto manifestação de vitalidade e afirmação da sociedade civil. Só uma direita autoritária e centralista pode negar o seu apoio à autonomia local[6] [7].

E essa é a triste sina da direita portuguesa: ser autoritária e centralista. Em Portugal, todos os movimentos de cariz centralizador e de ataque ao poder local forma promovidos pela direita: a Lei Martens Ferrão, de 1867, que reduzia drasticamente o número de freguesia e municípios originando a revolta da “Janeirinha”[8], ou os Códigos Administrativos centralizadores da Monarquia Liberal.

Mais tarde, o Decreto n.º 15 465, de 14 de Maio de 1928, da lavra de Salazar, enquanto Ministro das Finanças, regulou a reforma orçamental. O seu artigo 50.º a extinção dos municípios cuja despesa fosse absorvida em mais de 75% por despesas de pessoal, e na sua totalidade por estas despesas e amortizações de empréstimos.

O Código Administrativo de 1936-40 tornou o Presidente da Câmara Municipal num funcionário de nomeação governamental, impondo um severo regime de limitação de qualquer tipo de autonomia de decisão local, com a tutela administrativa e as restrições financeiras[9].

Hoje, em nome da crise económica e financeira que se vive, a direita portuguesa, um pouco por todo o lado ressuscita Salazar e o ignóbil Decreto n.º 15 465, de 14 de Maio de 1928: é com a Lei da Rata de Miguel Relvas (a Lei 22/2012, de 30 de Maio, que determina a extinção cega de freguesias)[10][11], é com as afirmações de Rui Rio, ou com a alucinação patente nos militantes e dirigentes do CDS, que vendo o malvado Estado em todo lado, querem promover a extinção de municípios e freguesias a uma escala maior que a da Lei da Rata! E de regionalização, nem ouvir falar!

E mais virá, com restrições no regime de finanças locais, cujo preâmbulo se pode ver na Lei dos Compromissos, e com a diminuição da democracia local nas leis eleitorais e no equilíbrio institucional entre os órgãos das autarquias locais…

Toda esta gente mostra, de forma clara, que a direita portuguesa não é, sequer, liberal: é autoritária e centralista!

IV – O descalabro financeiro das autarquias locais em Portugal, e em certa medida das Regiões Autónomas deve-se a vários factores. Desde logo o incumprimento habitual, pela administração central, da Lei das Finanças Locais no que concerne à repartição de recursos entre o Estado e as autarquias locais.

Mas muito mais que esse incumprimento, o descalabro financeiro das autarquias locais deve-se a uma deficiente responsabilização dos autarcas pelas decisões tomadas.

À cabeça da insuficiência dessa responsabilização encontra-se uma Lei da Tutela Administrativa feita à medida para a absolvição de autarcas. Uma condenação em perda de mandato por motivos relacionados com a gestão de autarquias locais é algo de pouco provável com este regime jurídico[12].

Mas também a falta de associação entre a gestão autárquica e os impostos cobrados para financiar as autarquias locais impedem uma correcta apreciação, pelo eleitorado, da qualidade dos seus autarcas. E é também por esse motivo que, ao contrário do que se verifica no Governo e nas eleições legislativas, as eleições autárquicas originam, em muitos casos, a perpetuação dos eleitos no poder, criando o fenómeno dos “dinossauros autárquicos”.

A verdade é que urge uma reforma das finanças locais em que, sem embargo da existência de mecanismos de perequação entre municípios mais e menos desenvolvidos, e de libertação da dependência dos municípios das receitas originadas pelo (mau) urbanismo, crie mecanismos que permitam aos cidadãos relacionar o trabalho de cada equipa de governo autárquico com o gravame fiscal.

Com isto não se pretende diminuir o financiamento das autarquias locais. Pretende-se antes que, no exercício das competências inerentes à sua autonomia, as autarquias locais ao definirem o seu financiamento permitam aos cidadãos que estes tenham uma correcta percepção do esforço que lhes é exigido. Porque o dinheiro gerido pelas autarquias locais tem de ser entendido como dinheiro proveniente do esforço dos cidadãos, e não como “dinheiro que chega miraculosamente de Lisboa”.

Outro dos factores que levou a este desequilíbrio financeiro das autarquias locais, reside na deficiência das normas de construção dos orçamentos municipais. Por princípio, os orçamentos municipais devem ser equilibrados, mas a realidade das contas de gerência revelam a presença de um défice sistemático na execução orçamental.

A razão é simples, e facilmente resolúvel. As normas de orçamentação impõem, quanto a muitas receitas, o respeito por critérios de quantificação: as transferências do Estado devem ser as constantes do Orçamento de Estado ou da respectiva proposta, os impostos próprios das autarquias locais e taxas devem corresponder à média de arrecadação dos últimos 24 meses e os empréstimos de médio e longo prazo só devem ser incluídos depois de contratados. Mas existem receitas que podem ser inscritas sem qualquer critério de verificabilidade da sua execução, como por exemplo a venda de bens de capital.

Esta realidade origina situações como a orçamentação da venda, por exemplo, de 3 000 campas num cemitério que serve uma população de 3 500 habitantes. Ou a previsão da venda de bens, cuja disponibilidade não se encontra totalmente nas mãos de uma autarquia, como é o caso de uma antiga prisão municipal, utilizada ainda pelo Ministério da Justiça. E isto para não falar da ausência de critérios para a avaliação desses bens a alienar…

Como é evidente, esta discricionariedade pode conduzir, e em muitos casos conduz, a uma previsão irreal da receita, permitindo assim a orçamentação de uma despesa de valor superior ao que seria permitido no respeito pelo equilíbrio orçamental.

Muitos dos problemas de equilíbrio financeiro das autarquias locais estaria resolvido com esta simples alteração às regras de orçamentação da receita: que apenas pudessem ser consideradas receitas provenientes da alienação de bens de capital após efectiva contratação da sua alienação.

O autor destas linhas não pretende descobrir a pólvora: esta está, há muito, descoberta. Mas este seria um golpe duro em autarcas que alimentam também a máquina eleitoral dos respectivos partidos. E talvez esta seja a verdadeira causa de não haver coragem política para semelhante alteração. Por isso, há quem prefira atacar os fundamentos da autonomia local, em vez de suprir as deficiências do seu funcionamento.

V – Como já se referiu, o reforço das competências fiscais das autarquias locais, a par de uma maior exigência nos critérios de orçamentação da receita das autarquias locais, poderão conduzir a uma maior responsabilização dos eleitos locais, e a uma melhor percepção do seu mérito pelos eleitores. De igual forma, uma Lei da Tutela Administrativa que efectivamente responsabilize os eleitos locais pela sua gestão, poderia exercer um efeito de prevenção geral na actuação destes.

Mas não podemos, por um minuto que seja, esquecer a importância de uma efectiva fiscalização política e democrática do trabalho dos eleitos locais. E tal só será possível reforçando e assegurando os meios de intervenção e fiscalização das forças políticas de oposição das autarquias locais.

Sem uma presença e poder efectivo das oposições nas autarquias locais, será aberto o caminho para a arrogância, para a prepotência e para a má gestão. Apesar de o Estatuto da Oposição ou de as próprias leis de organização e funcionamento das autarquias locais colocarem alguns meios, ainda que insuficientes, à disposição das oposições e de todos os membros das autarquias locais, a verdade é que a inexistência de consequências jurídicas para quem os boicote, esvazia-os de qualquer efeito prático.

Urge, por isso, dar maior relevo e meios efectivos para assegurar o papel de fiscalização às oposições nas autarquias locais. Sem que tal se faça, e pior, varrendo ou diminuindo o papel das oposições nas autarquias locais, seja pela via do seu desaparecimento dos executivos, seja pela via da diminuição do número de eleitos e consequente enviesamento da proporcionalidade na respectiva eleição[13], estaremos a promover a ascensão e eternização de tiranetes, prepotentes e até mesmo incompetentes!

E tudo isto agravado pela “privatização” da actividade das autarquias locais, consubstanciada por uma privatização que pode não ser por via económica, mas por via da submissão da respectiva actividade a um regime de direito privado, conseguido através da entrega dessas actividades ao Sector Empresarial Local. Com prejuízo claro para as regras de transparência e para uma efectiva fiscalização política pelas assembleias deliberativas das autarquias locais.

Igualmente importante, no reforço da autonomia local é o reforço da iniciativa cidadã, que poderia ser feito, e bem, com o aligeiramento das condições de apresentação de candidaturas independentes, cujo processo é ainda demasiado exigente e, por essa via, protege as máquinas com capacidade de organização, o reforço do acesso à informação e à participação de cidadãos na actividade dos órgãos autárquicos e, por último, na dignificação e facilitação dos referendos locais. Não se compreende que, após um processo moroso e difícil de recolha de assinaturas para uma iniciativa popular para a realização de um referendo local, possa a respectiva assembleia deliberativa recusar, sem mais tal apreciação (como já sucedeu na Assembleia Municipal do Porto, pela mão da maioria que sustenta Rui Rio)[14].

Falando em referendo, é de assinalar que não podendo os órgãos das autarquias locais ser dissolvidos, salvo por decisão judicial e devido a ilegalidades graves, não exista na constituição um esquema de revogação popular do mandato representativo como o “recal election”, acautelado pela necessária representatividade dos requerentes.

O Governo da República e os governos regionais podem ser demitidos por decisão política, a Assembleia da República e as Assembleias Legislativas Regionais podem ser dissolvidas, levando a eleições antecipadas, por decisão política, mas as autarquias locais permanecem inamovíveis. É incompreensível…

É que na verdade, sempre será de recusar a tese de Rui Rio: se houve má governação, não devem ser os eleitores a pagar. Ao invés, a responsabilização deve recair sobre os governantes! E por isso é que o caminho não é o do autoritarismo e o do centralismo. É antes o do reforço dos mecanismos de fiscalização pelas oposições, participação dos cidadãos e responsabilização dos eleitos.

Areia (Árvore), 11 de Junho de 2012



Rui Costa







[2] Ver o nosso artigo “A transcendência constitucional das autonomia local e a reforma territorial” in http://moralidadeemarmeleiro.blogspot.pt/2012/01/transcendencia-constitucional-da.html
[3] Ver Alves da Veiga, “Política Nova”, Livraria Clássica Editora, 1911, Lisboa, pág. 59
[4] Ver José Tavares “A Freguesia ou Parochia como divisão administrativa”, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1896, pp. 27 a 39
[5] Ver Alves da Veiga, “Política Nova”, Livraria Clássica Editora, 1911, Lisboa, pp. 47 e seguintes
[6] Ver a citação de Alexis Tocqueville in Alves da Veiga, “Política Nova”, Livraria Clássica Editora, 1911, Lisboa, pág. 60
[7] Ver ainda, quanto ao pensamento de  Alexis Tocqueville, José Tavares “A Freguesia ou Parochia como divisão administrativa”, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1896, pp. 1 a 26.
[8] Ver o nosso artigo “A “Janeirinha”, uma grosa de anos depois, os mesmos problemas” in http://moralidadeemarmeleiro.blogspot.pt/2012/01/janeirinha-uma-grosa-de-anos-depois-os.html
[9] Ver, por todos, José de Melo Alexandrino, “Direito das Autarquias Locais”, in Tratado de Direito Administrativo Especial”, Volume IV, coordenadores Paulo Otero e Pedro Gonçalves, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 57 e 58
[10] Ver o nosso artigo “O desprezo pelas freguesias inscrito na Proposta de Lei n.º 44/XII: notas sobre a sua inconstitucionalidade” in http://moralidadeemarmeleiro.blogspot.pt/2012/03/o-desprezo-pelas-freguesias-inscrito-na.html
[11] Ver o nosso artigo “A agregação de freguesias na Proposta de Lei n.º 44/XII: um cocktail de eufemismo e demagogia?” in http://moralidadeemarmeleiro.blogspot.pt/2012/03/agregacao-de-freguesias-na-proposta-de.html
[12] Ver André Folque, em comentário a Carlos Sousa “O poder local: de lema a problema?” in “Crise e reforma da democracia”, Edições Colibri, Lisboa, 2005, pág. 140.
[13] Sobre esta matéria ver António Cândido de Oliveira, “A Democracia Local”, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, em especial pp. 147 e seguintes.

1 comentário:

Kruzes Kanhoto disse...

As câmaras estão na ruína financeira porque fizeram obras desnecessárias, distribuíram subsídios de forma absolutamente descontrolada, festejaram tudo e mais alguma coisa e contrataram quase todos os que passavam em frente do edifício sede. Quanto à falta de dinheiro é bom não esquecer que no reinado de Guterres o FEF duplicou...Mas até podia aumentado dez vezes porque com a fúria gastadora não chegava na mesma!