segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Iniciativa Legislativa de Cidadãos: quem tem medo da democracia participativa?

Sumário: A possibilidade de cidadãos eleitores apresentarem iniciativas legislativas à Assembleia da República foi aberta com a Revisão Constitucional de 1997. Só em 2003 viria a ser regulamentada por lei, cujos requisitos para apresentação de iniciativas legislativas por cidadãos são tão exigentes que, em mais de 8 anos de vigência, apenas foi apresentada uma iniciativa legislativa de cidadãos! Por outro lado, a iniciativa legislativa de cidadãos é limitada a várias matérias, algumas por razões constitucionais, outras por razões inexplicáveis, como é o caso do estatuto de titulares de cargos políticos. Trata-se, no fundo de esvaziar materialmente este instituto de Democracia Participativa. No presente artigo procura-se falar criticamente do regime jurídico da Iniciativa Legislativa de Cidadãos e fazer a crítica à actuação dos partidos políticos portugueses nesta matéria. Sugerem-se ainda algumas alterações ao actual regime para que a iniciativa legislativa cidadã seja um efectivo instrumento de Democracia Participativa.


I - Nos termos do artigo 167.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, a iniciativa legislativa e de referendo pode ser exercida pelos Deputados à Assembleia da República, respectivos grupos parlamentares e pelo Governo. Pode ainda a iniciativa legislativa ser exercida por grupos de cidadãos eleitores, nos termos a definidos em lei, e pelas Regiões Autónomas, através das respectivas Assembleias Legislativas Regionais podem exercer a iniciativa legislativa, em matérias respeitantes às respectivas Regiões Autónomas.
Quanto à iniciativa legislativa para a Revisão Constitucional, a mesma é reservada aos Deputados à Assembleia da República, nos termos do artigo 285.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Desde a Revisão Constituicional de 1997, aprovada pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro,  que a iniciativa legislativa foi permitida a grupos de cidadãos eleitores, nos termos a definir em lei, procurando-se desta forma aprofundar os meios de exercício da Democracia Participativa, cuja dignidade constitucional resulta do artigo 109.º da Constituição da República Portuguesa.
Desta forma, a Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro,  pôs fim ao monopólio da iniciativa legislativa às emanações dos partidos políticos, que por sua vez têm o monopólio de candidatura à Assembleia da República, nos termos do artigo 151.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa,  e dos órgãos de soberania.

II - A concretização, por via legislativa, da iniciativa legislativa por grupos de cidadãos eleitores viria a ser feita pela Lei n.º 17/2003, de 4 de Junho, que teve origem nos Projectos de Lei n.º 9/IX (BE),  n.º 51/IX (PS), n.º 68/IX (PCP) e n.º 145/IX (PSD e CDS/PP), tendo o texto final da lei sido votado por unanimidade.
Já nas VII e VIII legislaturas haviam sido apresentadas iniciativas legislativas sobre esta matéria, que vieram a caducar com o fim da legislatura, delas não tendo resultado qualquer lei.
Para melhor delimitar as questões a abordar, abordaremos o regime jurídico da iniciativa legislativa de cidadãos por dois prismas: os requisitos numéricos para o seu exercício e a exclusão de matérias quanto ao seu exercício e a caducidade da iniciativa legislativa de cidadãos.

III - Quanto ao número de cidadãos eleitores necessário para subscrever uma iniciativa legislativa, foi fixado o número de 35 000, bem acima dos números inicialmente previstos, que eram:
 a) 4 000 no Projecto de Lei n.º 9/IX (BE);
 b) 0,3 % dos cidadãos recenseados no Projecto de Lei n.º 51/IX (PS) que corresponderiam "com referência às últimas eleições para a Assembleia da República, o recenseamento eleitoral abrangia globalmente 8 902 713 cidadãos, correspondendo 0,3% destes ao número de 26 708", conforme relatório da Assembleia da República;
 c) 5 000 no Projecto de Lei n.º 68/IX (PCP);
 d) 25 000 no Projecto de Lei n.º 145/IX (PSD e CDS-PP).
Fundamentavam, à época, PS, PSD e CDS-PP, as suas propostas quanto ao número de assinaturas requeridas, com o número de votos para a eleição de um deputado. Como se pode verificar com facilidade, há deputados eleitos com escassos milhares de votos nos círculos eleitorais da emigração, o que deita por terra esse fundamento.
Mas grave é o facto de  número que resultou do consenso verificado na votação final global, se ter manifestado um obstáculo material, e até mesmo uma forma de dissuasão, ao exercício da iniciativa legislativa de cidadãos, o que é cabalmente atestado pelo facto de, na vigência da Lei n.º 17/2003, de 4 de Junho, em mais de 8 anos, apenas ter sido apresentada uma iniciativa legislativa de cidadãos!

Verifica-se, pois, que o actual regime jurídico, quanto ao número de subscritores, é um verdadeiro entrave ao exercício desta dimensão da Democracia Participativa.

Poderá alegar-se, é certo, com experiências constitucionais e legais de outros países, que prevêem para a iniciativa legislativa de cidadão números bem maiores, quer em termos absolutos, quer em termos relativos, de acordo com informação expressa em nota técnica da Assembleia da República.

No entanto, tal é de refutar.

Em primeiro lugar, a dimensão participativa da democracia depende dos mecanismos que a efectivam. Assim, cada prática nacional deve ser tratada de forma individual, criando as melhores e mais adequadas soluções para o exercício da Democracia Participativa.

Em segundo lugar, a intervenção cidadã para a prática de direitos políticos é bem menos exigente que para a iniciativa legislativa de cidadãos:
 a) a propositura de candidatos a Presidente da República exige 7 500 assinaturas, nos termos do artigo 124.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;
 b) a formalização de partidos políticos  exige 7 500 assinaturas, nos termos do artigo 15.º, n.º 1 da Lei dos Partidos Políticos, aprovada pela Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 2/2008, de 14 de Maio);
 c) a apreciação de petições pelo plenário da Assembleia da República exige 4 000 assinaturas, nos termos do artigo 24.º, n.º1, alínea a) da Lei do Exercício do Direito de Petição, aprovada pela Lei n.º 43/90, de 10 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 6/93, de 1 de Março e pela Lei n.º 15/2003, de 4 de Junho e Lei n.º 45/2007, de 24 de Agosto.


IV - A segunda dimensão a analisar prende-se com a limitação, em razão de matéria, do exercício da iniciativa legislativa de cidadãos. O artigo 3.º da  Lei n.º 17/2003, de 4 de Junho, não permite, em razão de matéria, o exercício da iniciativa legislativa de cidadãos às seguintes matérias:
 a) Às alterações à Constituição;
 b) As reservadas pela Constituição ao Governo;
 c) As reservadas pela Constituição às Assembleias Legislativas Regionais dos Açores e da Madeira;
 d) As do artigo 164.º da Constituição, com excepção da alínea i);
 e) As amnistias e perdões genéricos;
 f) As que revistam natureza ou conteúdo orçamental, tributário ou financeiro.

Se relativamente às iniciativas legislativas de Revisão Constitucional, se percebe esta limitação, pois é a própria Constituição a limitar o exercício a tal direito, bem como no que respeita às reservas de competência legislativa do Governo e das Regiões Autónomas, não se percebe em relação às restantes matérias. Aceita-se ainda que, em função da reserva de iniciativa legislativa do Governo, não sejam admitidas iniciativas legislativas em matéria de Orçamento de Estado.


Agora, quer em matéria de amnistias e perdões genéricos ou em matéria tributária e financeira, bem como nas matérias que se incluem no artigo 164.º da Constituição, como por exemplo, o estatuto dos titulares dos órgãos de soberania, ou as leis eleitorais, não se percebe esta exclusão levada a cabo pelo legislador!


De resto, trata-se somente do exercício de iniciativa legislativa, ficando a sua aprovação na estrita esfera de competência da Assembleia da República!


Por isso, não se percebe esta grave limitação da iniciativa legislativa de cidadãos, que mais não é que uma grave exclusão da participação cidadã. Que temem os nossos deputados e partidos políticos? A decisão final continua a ser inteiramente deles!


V - O número de proponentes exigido e a limitação em razão de matéria despojam, de forma clara, o instituto da iniciativa legislativa de cidadãos. De igual forma, a exigência da recolha individualizada e com a apresentação do número de eleitor dificulta o procedimento de recolha de assinaturas, tanto mais que o Cartão de Eleitor se encontra em extinção, face ao Cartão do Cidadão, de onde o mesmo não consta.


Nesta legislatura, foram já discutidos os Projectos de Lei n.º 85/XII (PCP), n.º 123/XII (BE) e n.º 128/XII (PEV). O projecto de lei do PCP previa a redução do número de subscritores necessário, para 5 000 eleitores e a supressão da necessidade de indicar o número de eleitor. O projecto de lei do BE previa a institucionalização de uma plataforma electrónica pela Assembleia da República, para a recolha electrónica de subscrições a iniciativas legislativas populares. Já o projecto de lei do PEV se limitou à redução do número de assinaturas exigível para 5 500 eleitores.


Todos estes projectos de lei, apesar de mínimos, foram a 6 de Janeiro de 2012 rejeitados pelo PSD e pelo CDS, tendo o PS optado pela abstenção.


Claro que a posição e votação dos partidos se percebe: PSD, CDS e PS confessam nesta votação o óbvio: enquanto partidos de poder não querem ser incomodados pelas propostas de grupos de cidadãos eleitores.


O PCP (e o PEV, por arrasto), tem uma boa máquina partidária, e fortes ligações sindicais e com a sua proposta veria possibilitada a apresentação de iniciativas legislativas de cidadãos, com o reforço de significado que isso traria, através de militantes e simpatizantes seus.


O BE, que não dispõe de uma máquina partidária com o peso do PCP, mas que representa um eleitorado com mais prática dos instrumentos electrónicos, veria por esta via facilitada a apresentação de iniciativas legislativas de cidadãos por parte do seu eleitorado tipo.


Mas, neste jogo, ninguém ousou reduzir as matérias em que os cidadãos dispõem de iniciativa legislativa. Desta forma, nenhum dos projectos dava aos cidadãos o acesso de proporem alterações em matéria fiscal, em matéria de remuneração e estatuto dos titulares de órgãos de soberania, a criação e extinção de autarquias locais, ou o regime do sistema de informações da república e do segredo de estado.


Uma Democracia Participativa quer-se aberta, com o mínimo de limites à participação constitucionalmente permitida aos cidadãos. Sob pena de, com grandes limitações, ser um verdadeiro embuste, como actualmente é.


VI - Importa assim, quanto antes, alterar a lei que regula a iniciativa legislativa de cidadãos. O actual regime jurídico demonstrou cabalmente a sua ineficácia, ao apenas ter originado uma iniciativa legislativa de cidadãos em mais de 8 anos (uma segunda vem a caminho, a iniciativa legislativa "lei contra a precariedade).


De outra maneira, não se encontra, de forma efectiva, assegurado o exercício deste direito. É decisivo no desenho da Democracia Participativa em Portugal, e que cada partido assuma, com clareza, se para si, a iniciativa legislativa de cidadãos é, ou não, uma mera questão retórica.


Assim, e no actual quadro constitucional, seria desejável:
 a) A redução do número de assinaturas necessárias para a apresentação de iniciativas legislativas de cidadãos, sugerindo o número de 7 500, tal como é exigido para a apresentação de candidaturas a Presidente da República ou para a formalização dos Partidos Políticos;
 b) Redução das limitações de exercício de iniciativa legislativa em razão de matéria às matérias em que, por imposição constitucional seja quanto a matéria (Revisão Constitucional), seja quanto à reserva de competência e iniciativa legislativa (matérias cuja competência ou iniciativa estejam reservadas ao Governo e às Regiões Autónomas);
 c) Simplificação e agilização dos procedimentos do exercício de iniciativa legislativa de cidadãos, através da criação de uma plataforma electrónica, em que por assinatura electrónica possam os cidadãos dar a sua subscrição a uma iniciativa legislativa desta natureza.


Igualmente seria importante, tendo em conta a premência da questão, no momento actual, que fosse criado um critério especial para a apresentação de iniciativas legislativas de cidadãos relativamente à criação, extinção, fusão e alterações das autarquias locais, permitindo que um número razoável de cidadãos, da área abrangida por tal alteração, possam apresentar iniciativa legislativa de cidadãos sobre a matéria.


Por último julgo que, em sede de uma futura Revisão Constitucional, seria de admitir a iniciativa legislativa cidadã em matéria de Revisão Constitucional.


VII - Este é um combate decisivo na construção da Democracia. A Democracia não se esgota na sua dimensão representativa. Se assim fosse, seria tentado a dar razão à velha frase anarquista: "Se o voto é a arma do povo, não votes, pois ficas desarmado".


É inadmissível que se usem argumentos que, sob a capa de se pretender evitar a banalização da iniciativa legislativa de cidadãos, na verdade a impeçam materialmente.


É exigível, aos Senhores Deputados à Assembleia da República que analisem e votem, com mais frequência, as iniciativas legislativas dos cidadãos eleitores. Até porque, por vezes, S. Bento parece estar dentro de uma redoma de vidro.


Mas também é exigível, aos próprios cidadãos um maior inteiramento da Res Pública. Para isso, que se lhes ofereça meios efectivos.


PSD, CDS e PS, têm dado as mãos neste travar da Democracia Participativa. PCP, PEV e BE têm feito, na medida das suas possibilidades, esforços para atenuar este drama. E os cidadãos, verdadeiros beneficiários desta medida?


É altura, de também eles, se pronunciarem!


Porque é também na esfera jurídica que as comunidades se tornam mais coesas, através da criação de normas jurídicas por alargados processos de deliberação pública.


Até quando quer ficar alheado, e alienar exclusivamente aos Deputados eleitos a sua capacidade de propusitura, por períodos máximos de 4 anos?


Ventosa, 9 de Janeiro de 2011


Rui Costa


Post Scriptum: Não resisti a deixar aqui a intervenção da Deputada do BE Cecília Honório, que muito prezo, no debate da passada quinta feira, dia 5 de Janeiro de 2012, sobre esta matéria:
http://www.youtube.com/watch?v=_viquV-vVzc&feature=player_embedded

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