I - Chegados que estamos ao cabo deste ano de 2011, reproduzem-se saudações de boas vindas ao novo ano e repetem-se, indiferenciadamente, votos de um bom e feliz 2012. Votos que são efectuados ora por contacto pessoal, ora de forma menos directa, afectuosa e pessoal por via de correio electrónico, cartões ou sms’s. Contactos que são efectuados ora de forma sincera, ora como convenção social.
Este ano optei por não desejar bom ano novo a ninguém. Esta opção nada tem que ver com um amuo, um estado de espírito depressivo ou ainda com um comportamento egoísta de guardar esses votos para mim e para os meus, recusando-me a partilha-los com todos os que lidam comigo. Tem que ver, sobretudo, com uma recusa convicta de alinhar no branqueamento de um período que será tudo menos bom.
Este ano resisti a deixar amolecer o meu estado de espírito pela quadra de paz e amor que, alegadamente, encerra o espírito do Natal e demais comemorações solisticais.
É bem verdade que esta quadra é caracterizada por um aparente de espírito de fraternidade e amor universal, com grande destaque para a valorização do convívio familiar e, sobretudo do consumo desenfreado, num estado de alienação de espírito que dulcifica a nossa maneira de ver o mundo.
Mas também é verdade que esta dimensão nada tem de fraterna quando provoca desconforto em todos aqueles que, por não terem família e amigos, por não terem recursos económicos para terem os níveis de consumo que nos são incutidos pela publicidade e toda a metralha disparada pelos meios de comunicação social e ainda pelo sem número de oradores de ocasião, que investidos no seu orgulho familiar ou com a sua situação económica arrasam os infortunados.
Estes factores, acompanhados pela grave situação do País e da Humanidade, levam-me, assim, a trocar a tradicional mensagem desejando um bom ano novo, por um grito de alerta e uma séria reflexão sobre o momento que vivemos. Sim, resisti à hipnose e alienação colectiva que me costuma atacar nesta época do ano.
II – Portugal é hoje um país conformado. Um país cujo Povo deixou de lutar, mas sobretudo de acreditar de uma forma geral nos seus dirigentes, nas políticas por estes desenvolvidas e, finalmente em si mesmo enquanto Povo.
Fomos fustigados, de forma subliminar, por termos adquirido casa própria, carro, por nos termos endividado, por termos aumentado o nosso nível de vida, e, consequentemente, condenados a pagar toda essa factura de termos aspirado a um melhor nível de vida.
Por isso, todos aqueles que nos incutiram confiança para levar a cabo essa melhoria, como sejam determinada classe política, a União Europeia, as grandes empresas, os bancos, a comunicação social, entre outros, apontam-nos agora o dedo e, com paternalismo reprovador exigem sacrifícios.
Ora, não foram eles que nos apontaram esse caminho? E já agora, que beneficiaram, de forma inequívoca dessa nossa conduta, ampliando o mercado, aumentando os respectivos lucros e resultados e oferecendo-nos uma panóplia de produtos que nos distraíram da realidade?
Uma pergunta se impõe: tendo sido a União Europeia, as grandes empresas e os bancos os beneficiários desta nossa conduta, que agora reprovam, quais os sacrifícios que lhes serão exigidos, e em que medida?
É essa a pergunta a que não querem, nem podem responder, sob pena de acordarem as nossas consciências. Preferem, de forma grave e paternalista, indicar-nos o caminho do sacrifício, que é redobrado por agora nos ser tirado muito daquilo que, afinal de forma leviana, eles próprios nos proporcionaram.
Parámos para pensar e, numa histeria colectiva, chegámos à conclusão que exagerámos no consumo, que fomos além das nossas possibilidades. E com isso nos conformamos, auto-flagelando-nos com a aceitação mais ou menos generalizada das medidas iníquas e desequilibradas que nos impõem.
Preferimos hoje, exorcizar a situação actual, atacando desenfreadamente os outros, nos seus direitos e dignidade, esquecendo que esses mesmos direitos e dignidade são nossos. Sem dar-mos por isso, desatámos a projectar as nossas frustrações no exercício dos direitos dos outros, esquecendo que também nós somos titulares desses mesmos direitos.
Refiro-me, claro está, aos cortes na Função Pública, à custa das regalias e direitos laborais, em nome do combate a um Estado alegadamente gordo e ineficaz, do qual somos também parte integrante e beneficiária.
Refiro-me ao corte de prestações sociais de que podemos beneficiar, em nome do combate ao abuso ou à fraude.
Refiro-me ao aumento do custo de serviços assegurados pelo Estado, como os cuidados de saúde, os transportes públicos ou a circulação rodoviária, em nome da poupança, do combate ou abuso, ou tão só do princípio do utilizador pagador, esquecendo sempre a solidariedade para com os mais desfavorecidos ou para com as regiões menos desenvolvidas.
Refiro-me ao acentuar da instabilidade e precariedade laboral, em nome da saúde da economia, penalizando trabalhadores, especialmente os mais velhos e os mais jovens, cuja remuneração será, por esta via, ainda mais condicionada.
E todos, mas todos eles, resultam de Direitos Fundamentais inscritos na Constituição, cujo cumprimento é um dever do Estado, e cujo dever fundamental associado aparece sobre a forma de impostos. Paradoxalmente, a par da redução de direitos, os deveres aumentam de forma insustentável.
Por tudo isto, 2012 será um ano de sacrifícios, de insatisfação e frustração da generalidade dos portugueses. Espero enganar-me, mas esta frustração conduzirá, inevitavelmente, à intolerância. Mas não à intolerância contra os verdadeiros responsáveis do estado a que chegámos, ou pelos responsáveis pela injusta repartição dos sacrifícios que nos são impostos.
Na verdade, a intolerância virá dos portugueses contra os portugueses. Haverá muitos que prontamente apontarão prontamente o dedo aos que, insatisfeitos, exprimam o seu desagrado: “Greve? O país precisa é de trabalho!”; “Manifestação? Que trabalhem, e não incomodem quem trabalha!”; “Opinião diversa? O que importa é unir, porque o futuro é incerto, e temos de dar um sinal ao exterior!”. E seguramente que haverá quem até ache que alguns dos Direitos Fundamentais que suportam estas condutas, são afinal modeláveis, alienáveis e até mesmo descaracterizáveis, em nome de uma paz social que nos permita sair ordeiramente, pelo caminho que nos impuseram, desta situação.
É este, fundamentalmente, o meu receio em relação ao ano que se inicia: que seja um ano de destruição do essencial que levou séculos, de sangue, suor e lágrimas a construir: um sistema de Direitos Humanos, de Garantias e Direitos de Participação Política e de Direitos Económicos Sociais e Culturais.
E tudo, mas tudo, em nome de uma Paz Social que não pode existir, na medida da distribuição dos sacrifícios imposta aos portugueses. Tudo, mas tudo, por causa da letargia de um Povo que desistiu de lutar, e se conformou, em pânico, com o que lhe foi imposto.
Estamos em risco de perder muito, do nosso conforto e da satisfação das nossas necessidades, até das mais básicas, e se assim continuarmos, perderemos muito mais, perderemos a nossa dignidade, cuja expressão mais não é que o acervo de Direitos Fundamentais.
E tudo, mas tudo, porque qual avestruz enterrámos a cabeça na areia, e nos recusamos a ver a verdadeira causa das coisas, assumindo cada um de nós a responsabilidade como nossa, ou como de outros, particularizada em casos concretos e pontuais de injustiça e abuso. Em suma, virando-nos uns contra os outros, e a final, contra nós próprios!
III – A imposição de todas estas medidas de austeridade, decorre dos compromissos firmados com a União Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, verificando-se especial pressão de países como a Alemanha e a França, curiosamente as maiores economias da zona euro.
O euro nasceu como forma de assegurar estabilidade cambial e evitar os perigos da prática da desvalorização competitiva de moedas num espaço de livre circulação de mercadorias e bens. Sem dúvida que se tratou de uma medida essencial e louvável, permitindo, em princípio, maior justiça nas transacções entre as economias integrantes da União Europeia. Sucede que, os critérios que fundam o Euro foram desadequados e desequilibrados para muitas das economias da zona Euro.
Optou-se por uma moeda forte, constantemente valorizada face a outras divisas, e óptima para quem importa matérias-primas e exporta produtos de alto valor acrescentado. Resulta claro quem beneficiou, e beneficia desta situação: os países mais desenvolvidos e cujo valor acrescentado da respectiva produção beneficiam com uma moeda forte. As consequências são evidentes para países com uma estrutura menos desenvolvida, mais dependente dos custos da mão-de-obra e das flutuações cambiais. Curiosamente, os mesmos que pagarão, mais uma vez, a factura do resultado dessas políticas!
Importante, não é a saída do Euro, ou a divisão da Europa em vários “pelotões”, como alguns advogam. Importante é o reforço da solidariedade europeia, e a adopção de novos critérios de convergência da Zona Euro, que se traduzam numa maior equidade na ponderação dos interesses das diversas economias que a compõem!
O Banco Central Europeu, cujas reservas resultam da contribuição dos Bancos Centrais dos Estados Membros não pode emprestar a esses Estados. Contudo, alimenta a especulação e a usura, ao emprestar a taxas reduzidas (1 %) aos bancos comerciais, o valores que estes emprestam a 5%, 6% e mais aos Estados, cujas reservas dos respectivos Bancos Centrais, sua propriedade, alimentam esse mesmo crédito concedido aos bancos comerciais.
Impõe-se por fim a este logro, a esta verdadeira imoralidade, cuja consequência é o seu pagamento pelos contribuintes dos países vítimas deste esquema.
Por isso, deve haver uma urgente renegociação da dívida, cujos encargos originaram todos estes sacrifícios pelo Povo Português e Europeu. Pela justiça, pela solidariedade entre os povos!
E para aqueles, que do alto da sua moralidade, alimentam este esquema, acrescentando com tom piedoso que os contratos e as obrigações são para cumprir, tenho uma mensagem: o nosso Código Civil, apesar da autonomia privada garantida às partes na celebração de contratos, prevendo situações de abuso, injustiça e exploração da necessidade alheia, impõe a todos os negócios privados esse respeito, sob pena de anulabilidade.
Se assim é relativamente aos contratos entre privados, na nossa vida quotidiana, não vejo razão para que não seja nos contratos que envolvam o Estado. Por isso, e não esquecendo a minha costela de jurista, transcrevo-vos três dessas normas:
“ARTIGO 282º
(Negócios usurários)
1. É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.
2. Fica ressalvado o regime especial estabelecido nos artigos 559º-A e 1146º.
2. Fica ressalvado o regime especial estabelecido nos artigos 559º-A e 1146º.
ARTIGO 559º-A
(Juros usurários)
É aplicável o disposto no artigo 1146º a toda a estipulação de juros ou quaisquer outras vantagens em negócios ou actos de concessão, outorga, renovação, desconto ou prorrogação do prazo de pagamento de um crédito e em outros análogos.
ARTIGO 1146º
(Usura)
1. É havido como usurário o contrato de mútuo em que sejam estipulados juros anuais que excedam os juros legais, acrescidos de 3% ou 5%, conforme exista ou não garantia real.
2. É havida também como usurária a cláusula penal que fixar como indemnização devida pela falta de restituição de empréstimo, relativamente ao tempo de mora, mais do que o correspondente a 7% ou a 9% acima dos juros legais, conforme exista ou não garantia real.
3. Se a taxa de juros estipulada ou o montante da indemnização exceder o máximo fixado nos números precedentes, considera-se reduzido a esses máximos, ainda que seja outra a vontade dos contraentes.
4. O respeito dos limites máximos referidos neste artigo não obsta à aplicabilidade dos artigos 282º a 284º.”IV – Perante tudo isto, não posso, como perceberão, alinhar na hipocrisia de desejar um bom ano de 2012, quando se torna evidente que ele não se perspectiva bom, nem justo.
Poderia ter ficado calado, no meu cantinho, e não vos incomodar. Mas não o podia fazer. Iria contra as minhas convicções e, acima de tudo, seria um desrespeito pela luta de todos que nos antecederam no labor de construir um mundo mais justo, um mundo de LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE, cujo aprimoramento quero continuar.
Para isso, apelo à consciência cívica, ao sentimento de justiça e à fraternidade de cada um de vós. Encolher os ombros não é o caminho! É tempo de interrogar, é tempo de incomodar!
Um abraço fraterno,
Rui Costa
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