Sumário: A autonomia local é uma realidade pré-existente à Constituição, e não uma decorrência dela. Quer quanto à existência institucional das autarquias locais, quer, muitas vezes, quanto à existência em concreto de cada uma delas. Falamos de uma realidade que se perde com o início da sedentarização do Homem, em geral, e no caso concreto português, de realidades com centenas de anos de história, em alguns casos anteriores até à formação da nacionalidade. Estes factos dotam a autonomia local, quer se fale dela em termos gerais, enquanto instituição do Direito, quer em termos concretos, no que tange à existência de cada autarquia local individualmente considerada, de uma legitimidade autónoma e na maioria dos casos anterior e transcendente à própria legitimidade que funda a Constituição. A reforma que se pretende fazer tem, por isso, necessariamente de ser feita com a participação das populações. De resto, é uma imposição da Carta Europeia da Autonomia Local, que aliás prescreve o recurso ao referendo, no seu artigo 5.º. A via do referendo como legitimação da reforma do mapa das autarquias locais deve ser, por tudo isto, a via escolhida para qualquer reforma que se venha a fazer.
I - O
auto-governo das comunidades perde-se nas raízes do tempo e é uma das primeiras
manifestações de organização da vida em sociedade.
Desde
sempre houve formas de organização da vida das pequenas comunidades, que
encontraram, elas mesmas, formas de organização e estruturas de poder, bem como
normas reguladoras da vida em sociedade, qualquer que fosse a civilização ou modelo de organização social.
A
evolução dos sistemas de organização política e social em escala supra-local,
por mais centralizadores do poder que fossem, tinham necessariamente de
conviver com esta realidade, podendo, no entanto, conferir uma maior ou menor
grau de auto-governo às comunidades locais, com uma maior ou menor dimensão formal.
A
Grécia Clássica, nunca teve grandes preocupações nesta matéria.
Era uma civilização atomizada em várias cidades-estado, não se manifestando a necessidade, apesar dos pergaminhos democráticos, de desenvolver um
regime de autonomia local.
Já
o Império Romano, pela dimensão que veio a atingir, bem como pela complexa teia
administrativa e militar que o sustentou, cedo teve necessidade de desenvolver figurinos
para a administração à escala local do Império, destacando-se o Municípium, que
perdurou como referencia, até enquanto designação de circunscrição
administrativa ou de autarquia local por milhares de anos.
Também
na Idade Média se verificou a existência de formas de organização local com
ampla autonomia, e nem sempre sendo alheia essa autonomia, por paradoxal que
possa parecer a medidas de fortalecimento do poder real, em detrimento do poder
da nobreza e clero. A organização municipal concelhia da Península Ibérica, com os concellos em Leão-Castela e os concelhos em Portugal.
As Liberdades Ibéricas sempre compreenderam um poder local forte, sendo aliás o poder local entendido como liberdades locais, com especial enfoque nos direitos e obrigações das populações e estrutura participada de governo, sendo as soluções quase sempre diferenciadas para cada concelho.
A
importância da existência de formas de auto-governo local não passou
despercebida ao movimento do constitucionalismo moderno, designadamente o
verificado na sequência Revolução Francesa de 1789, tendo nessa circunstância
motivado amplos e acalorados debates entre os constituintes.
II - Assim, a pré-existente realidade da autonomia local, pré-existente ao Estado e pré-existente às constituições, foi carreada para o ordenamento jurídico-constitucional.
A partir daí, muitos entenderam a existência de poderes locais e a sua organização imanente à Constituição, e não como uma realidade anterior, reconhecida no ordenamento constitucional!
Elevar a autonomia local a um direito natural, seria discutível, considerando até o próprio processo de formação do Direito Natural e todos os problemas da sua definição, bem evidenciados por Norberto Bobbio.
Mas é preciso entender a autonomia local como algo anterior e transcendente à própria Constituição, que resulta da própria essência das relações humanas e dos fenómenos de socialização.
É evidente que o conceito de autonomia local é dinâmico, e sujeito a variações doutrinárias e ideológicas. No entanto ele comporta sempre o reconhecimento do direito de uma população que habita sedentariamente um território de decidir sobre aspectos particulares da vida da respectiva comunidade, pese embora integrada numa comunidade política mais vasta.
Assim, teremos de enquadrar como núcleo fundamental da autonomia local o auto-governo das comunidades, compreendendo a eleição dos seus órgãos de decisão, e garantindo-se às comunidades os meios para a satisfação das suas necessidades.
Ainda que por via do direito positivo se possa atentar a existência da autonomia local, num prisma formal, o exercício do conteúdo mesma não deixará materialmente de existir, consistindo na decisão dos vizinhos, à margem do ius imperi, em espaços da vida comunitária que fiquem a descoberto da intervenção do Estado, por desconhecimento ou omissão.
Nesse vazio, os membros da comunidade tomarão sempre decisões colectivas para a satisfação das suas necessidades, tomando decisões, escolhendo executores e angariando os respectivos meios, ainda que não disponham de enquadramento legal para o efeito.
Também resulta evidente que o papel da autonomia local é variável, não só por condicionantes relacionadas com opções políticas do constituinte e do legislador, mas também em função da evolução dos tempos e das necessidades das comunidades.
Por isso, não podemos entender o desenho das competências e funcionamento das manifestações formais da autonomia local como um modelo pétreo. Temos antes de encarar a autonomia local como uma realidade dinâmica, não esquecendo o seu núcleo fundamental.
O mesmo se diga quanto à delimitação territorial, em concreto, das várias formas de manifestação da autonomia local. Cada comunidade local tem hoje o seu território definido, e mesmo quando não o tem formalmente, ele resulta de convenções ancestrais, e é de todos os que interagem no seio da comunidade local respectiva, ou com ela, conhecido.
Mais, tal território resultou de dinâmicas sociais, como sejam a residência dos utilizadores ou possuidores dos próprios terrenos. E assim se foram construindo, anteriormente a qualquer disposição constitucional ou legislativa, os limites de muitas manifestações territoriais de autonomia local.
Foi um processo longo, traduzindo-se, muitas vezes, na sedimentação se séculos de vivência. Por isso, também a delimitação territorial das manifestações da autonomia local, gozam de uma legitimidade que transcende a construção constitucional e legal.
Note-se, que também esta realidade é dinâmica, considerando as variações demográficas, sociais e económicas que se verifiquem. Os mapas de divisão administrativa não podem ser, desta forma, estanques, e devem reflectir a evolução dos tempos.
As identidades das comunidades locais, e o sentimento de pertença dos que a integram, são determinantes em qualquer alteração à organização e delimitação das manifestações de autonomia local. Também porque muitas vezes são pré-existentes à própria realidade jurídico-constitucional que pretenda proceder a alterações.
É esta a razão do carácter conturbado de qualquer reforma territorial, ou diminuição de competências das comunidades locais que seja feita por via não consensual. É que de uma forma generalizada, as comunidades afectadas sentem-se mais legitimadas nas suas pretensões do que o poder constitucionalmente legítimo que as pretenda impor.
III - No caso português, actualmente, as nossas manifestações de autonomia local passam, no âmbito da organização administrativa, pelas autarquias locais, e com assento constitucional, mas com um regime algo indefinido, pelas organizações de moradores.
A Constituição da República Portuguesa de 1976, consagra um regime generoso de autonomia local, apesar de nem sempre o mesmo ser coerente entre os diversos níveis de autonomia local.
Estabelecem-se três tipos de autarquias locais: a freguesia, o município e a região administrativa, sem prejuízo de outros tipos poderem ser criados em casos específicos.
Destes três tipos de autarquias locais, duas têm existência milenar, sendo a respectiva existência, em concreto, centenária, e em alguns casos anterior à própria nacionalidade: a freguesia e o município.
Já a região administrativa não teve aplicação em concreto, havendo aliás uma fraca tradição supra-municipal em Portugal, motivada pela intermitência deste tipo de autarquia ao longo da aplicação dos diversos modelos de organização administrativa, pela ausência de competências e financiamento relevantes e, consequentemente, pela ausência de uma identidade comum das respectivas populações.
Só a sua instituição em concreto, e uma longa existência permitirão que as autarquias supra-municipais possam adquirir esse estatuto de comunidade que tornem a sua existência querida e exigida. Oxalá não tardemos a trilhar esse caminho. Até lá, serão sempre vistas como uma realidade que não é natural, não obstante os fortes sentimentos identitários dos Minhotos, Transmontanos, Alentejanos e Algarvios.
O Governo anunciou a sua intenção de avançar com uma proposta de lei conducente à supressão de freguesias, atendendo ao seu elevado número e à reduzida dimensão de muitas delas. Igualmente anunciada está a intenção de proceder igualmente, mas de forma menos drástica em relação aos municípios.
Lembro que a maioria das freguesias têm largas centenas de anos, porque oriundas das paróquias católicas, e no que aos concelhos respeita, muitos têm também centenas de anos, encontrando-se este mapa consolidado há mais de 150 anos.
A identidade local existe, e é arreigada, especialmente nas comunidades de menor dimensão populacional, que de acordo com os princípios orientadores da reforma em estudo, serão o principal alvo.
São comunidades cuja existência dotada de autonomia local está legitimada por largas centenas de anos de construção de uma identidade comum, legitimidade essa que é anterior à legitimidade constitucional, sendo certo aliás, que a Constituição de 1976 as recebeu enquanto realidade pré-existente e, na sua vigência, não houve necessidade de, por via legal, ou qualquer outra, legitimar a sua existência e delimitação territorial.
IV - A Constituição de 1976 reserva para lei da Assembleia da República a divisão administrativa (artigos 164.º, alínea n), 236.º, n.º 4), exigindo assim a exclusiva competência do órgão legislativo dotado da legitimidade directa do voto dos cidadãos.
A constituição exige ainda, quanto às alterações ao mapa dos municípios, seja ela por criação, extinção ou modificação territorial, a audição dos órgãos do município afectado (artigo 249.º). Igual exigência não é feita quanto às freguesias. No entanto, essa exigência quanto a todas as autarquias locais decorre da Carta Europeia da Autonomia Local, tratado internacional ao qual Portugal aderiu e se encontra vinculado, e que exige, no seu artigo 5.º: "As autarquias locais interessadas devem ser consultadas
previamente relativamente a qualquer alteração dos limites territoriais locais,
eventualmente por via de referendo, nos casos em que a lei o permita." .
A Carta Europeia da Autonomia Local, trás um novo elemento à discussão: a consulta, por via de referendo, quando a lei o permita. E a lei pode permiti-lo. Para o efeito, basta que obrigue à audição dos órgãos das autarquias locais afectadas, e que esta audição tenha carácter vinculativo, com prazos adequados à realização de referendos locais, permitindo assim ouvir as populações quanto ao seu destino.
Desta forma, este Governo tão preocupado com o cumprimento de compromissos internacionais que nem sequer a forma de tratado revestem, ou foram sequer escrutinados pela Assembleia da República e pelo Presidente da República (o que poderia abrir o perigoso caminho da fiscalização da sua constitucionalidade ou da sua submissão a referendo), teria a possibilidade de cumprir com esta obrigação internacional prevista no artigo 5.º da Carta Europeia da Autonomia Local.
Pode, como é evidente, argumentar-se que isto seria o mesmo que inviabilizar a reforma que se pretende levar a cabo. Ora, tal argumentação não procede. Em primeiro lugar, porque poderá haver comunidades cuja identidade seja menos vincada, especialmente as urbanas e de maior dimensão, cujos laços são mais ténues. Em segundo lugar porque pode haver até casos onde as próprias poulações desejem essa reorganização, tendo já havido esses debates, no seio da sociedade civil, sobre as fusões dos municípios do Porto e Vila Nova de Gaia e a fusão dos municípios da região de Lafões.
Outro argumento em contrário prende-se com a necessidade de dimensão e racionalização do mapa das freguesias. Pois bem, incentive-se essa reorganização com o acesso a mais meios e competências, e talvez as populações, ouvidas em referendo, sejam sensíveis à mudança.
Sem esquecer, como já referi anteriormente, a adequação dos requisitos para o exercício da iniciativa legislativa de cidadãos nesta matéria.
De igual modo se devia avançar com a regulamentação das Organizações de Moradores, que não ocorreu até hoje, e que permitem um aprofundar da democracia local, tendo presença garantida nas respectivas Assembleias de Freguesia, e permitindo até, eventualmente, suprir a eventual eliminação de freguesias, mantendo a identidade cultural da comunidade, e permitindo a sua actuação enquanto tal em algumas circunstâncias.
Em Portugal, nenhuma reforma deste género, em relação às freguesias foi avante, como já disse em outro escrito. A fazer-se terá de ser com as populações, e nunca contra elas.
Ventosa, 12 de Janeiro de 2012
Rui Costa
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