Sumário: Nesta terceira parte da Moção "Por uma sociedade à Esquerda" abordo os problemas da Democracia Participativa e da organização da administração pública, fazendo referência à problemática da regionalização. Os 13 anos que passaram desde a elaboração do texto demonstram, de forma clara o pouco que se fez até hoje nesta matéria, sendo claros os medos e receios da classe política no aprofundamento de mecanismos de participação cidadã.
Por uma Democracia Participativa
O alheamento dos cidadãos
da actividade política é, infelizmente, um dado adquirido nas sociedades
contemporâneas. Este alheamento merece da esquerda e do Partido Socialista
resposta adequada, no sentido de reforçar e aprofundar a vivência democrática.
Uma política global de
reforma do Estado com uma forte preocupação de dinamizar a participação cívica
é uma solução credível e desejável.
A Revisão Constitucional
de 1997, apesar de todas as insuficiências causadas pelo boicote da Direita
Parlamentar, demonstrou o empenho do Partido Socialista em levar a cabo uma
séria reforma do sistema político, consagrando medidas como a iniciativa legislativa
popular, o fim do monopólio partidário nas candidaturas aos órgãos das Autarquias
Locais, ou a introdução de círculos uninominais no sistema eleitoral para a Assembleia
da República, num quadro de manutenção da proporcionalidade do sistema.
A revisão do sistema
eleitoral para a Assembleia da República é uma forte medida de aproximação dos
eleitores dos eleitos, através da criação dos círculos uninominais, devendo ser
retomada pelo Partido Socialista.
A este propósito foi
também proposta a introdução de um sistema de quotas para garantir uma
participação minimamente igualitária de ambos os sexos nas listas. Ninguém põe
em causa a necessidade de aumentar a participação das mulheres na actividade
política. Este é um princípio fundamental a ser prosseguido por todos os partidos
políticos. Contudo, prioritário à imposição legal de quotas, é o combate
directo às causas do baixo índice de participação política feminina.
A participação feminina
na actividade política em Portugal é reconhecidamente inferior à média
europeia. Tal facto deve-se ao atraso cultural de que fomos e ainda somos
vítimas em consequência de 48 anos de isolamento e ditadura. Na maior parte dos
países europeus a participação das mulheres foi um processo natural e
evolutivo. O mesmo se passou em Portugal até aos dias de hoje, com a
condicionante do nosso atraso. Portugal já teve uma mulher como
Primeira-Ministra e candidata a Presidente da República e o número de governantes,
deputados e autarcas do sexo feminino.
É fundamental investir ao
máximo na mudança de mentalidades, eliminando preconceitos machistas e
incutindo nas mulheres o a necessidade de participação política. Infelizmente, ainda
hoje entre as mulheres dos meios rurais ou entre as mulheres menos jovens, não
há receptividade feminina para a participação na vida política. Importa que
este processo seja resultado de uma evolução natural de mentalidades e não de
uma mera imposição legal. A imposição legal de quotas é uma medida artificial,
que poderá associar uma imagem negativa à participação política feminina, na
medida em que a sua participação é assegurada por imposição legal. A evolução
natural da participação feminina é determinante para a sua solidez e credibilização.
Sempre foi apanágio do
Partido Socialista a participação política feminina, podendo uma solução deste
género insinuar dúvidas sobre a vontade das estruturas intermédias do Partido
Socialista no que toca à
participação feminina. Acreditamos convictamente no papel relevante das
mulheres na actividade política, lutamos e lutaremos em nome da sua presença
efectiva.
O fim do monopólio dos
partidos políticos nas candidaturas aos órgãos das Autarquias Locais,
consagrado na última revisão constitucional, possibilita candidaturas
independentes aos órgãos do Município, representando um avanço significativo
nas formas de participação política do cidadão. É agora importante regulamentar
este direito, assegurando a sua exequibilidade nas próximas eleições
autárquicas.
Outra inovação da última
revisão constitucional foi a iniciativa legislativa popular, possibilitando
assim a participação directa do cidadão na actividade legislativa. Esta reforma
constitucional carece de urgente regulamentação no sentido de possibilitar o
mais rápido possível a efectivação deste direito.
Acresce ainda a
necessidade de uma campanha de esclarecimento, a levar a cabo pelos órgãos de
soberania e partidos políticos, por forma a incentivar o cidadão ao uso desta
forma de participação.
O referendo foi pela
primeira vez utilizado nesta legislatura, sendo os índices de participação
inferiores ao desejado. Julgamos a prática referendária salutar como forma de
aprofundar a democracia participativa. Todavia, importa encontrar formas de
aumentar a participação nestes actos, sendo necessário o empenhamento crescente
dos partidos políticos e de elementos de reconhecida capacidade da sociedade
civil no sentido de incrementar um debate sério e abrangente em toda a
sociedade, despertando assim a consciência cívica da população.
É ainda de saudar os
esforços do Governo e do Partido Socialista no sentido de alargar a prática
referendária à Administração Autárquica. Esta iniciativa servirá seguramente
para um enraizar do instituto do Referendo no sistema político português.
Num momento em que
assistimos a uma forte contestação à carga fiscal, curiosamente uma das mais
baixas da União Europeia, afigura-se necessário prover para que haja um maior
sentimento de retribuição do Estado ao contribuinte. Nesse sentido, entre
outras medidas que não interessa aqui abordar, o Partido Socialista deve
estudar e propor formas de participação do cidadão na repartição da despesa
pública.
A introdução do Orçamento
Participativo, uma figura onde o contribuinte pode afectar uma parte da sua
contribuição fiscal a uma área de actuação da Administração Pública, deve ser
ponderada pelo Partido Socialista. Desta forma será possível auscultar os
anseios dos contribuintes, bem como poder criar uma maior satisfação e sentimento
de retribuição no contribuinte.
A participação cívica não
se esgota na reforma do sistema político, podendo ser incrementada através de
uma reforma administrativa, de uma maior abertura dos partidos políticos à
sociedade civil e do apoio ao associativismo.
Nota: A Democracia Participativa é um das
melhores vias para o combate ao crescente desinteresse dos cidadãos pela
política. Este desinteresse, resultante, sem dúvida, de uma vivência cada vez
mais individualista, e também resultante da alienação ao consumo, tem, em minha
opinião, um factor agravante: o excessivo formalismo e hermetismo do
funcionamento da Democracia Participativa.
Com efeito,
e em resultado da influencia do Contrato Social de Rousseau na construção das
teorias da Democracia Representativa, verifica-se, de uma forma genérica, uma
alienação periódica da nossa quota parte na soberania em favor de
representantes eleitos, ou que pelo menos tenham uma legitimidade democrática
mínima (refiro-me aos Governos, cuja legitimidade, pelo menos do ponto de vista
formal, não resulta na esmagadora maioria das Democracias Representativas de
uma legitimidade democrática directa).
A Democracia
Representativa criou também mecanismos formais de limitar a participação dos
cidadãos em geral, reservando todo o processo decisório, e em especial os
impulsos decisórios, para os que exercem o mandato representativo. Desta forma,
criaram-se condições para transformar aqueles em quem reside, de direito, a
soberania, em meros espectadores do processo democrático formal no intervalo
dos actos eleitorais. Claro está, que este processo em nada contribui para a
aproximação dos cidadãos à Res Pública, contribuindo até para a sua
incompreensão e a sua frustração com os processos democráticos.
É urgente
hoje, como já era há 13 anos, introduzir mecanismos que acentuem a importância
e exequibilidade da Democracia Directa, da Democracia Participativa e da
Democracia Deliberativa.
Na moção,
referia-me algumas janelas de oportunidade abertas pela Revisão Constitucional
de 1997 que viriam a merecer, entretanto, tratamento legislativo:
a) A possibilidade de candidaturas
independentes para todos os órgãos das autarquias locais, que viria a ser estabelecida
pela Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto. Apesar desta importante reforma,
não se verificou um grande recurso a esta possibilidade, mantendo-se,
essencialmente, um oligopólio partidário nestas candidaturas, quer seja pela
complexidade dos processos de formação de listas independentes,
comparativamente com a apresentação de listas por partidos políticos, quer seja
pelo contínuo alheamento dos cidadãos;
b) A iniciativa legislativa popular, que
viria a ser consagrada pela Lei n.º 17/2003, de 4 de Junho, verificando-se que,
desde a sua entrada em vigor, apenas foram apresentadas duas iniciativas
legislativas ao abrigo deste regime, tais são as exigências formais para a sua
apresentação, o que, e conforme já afirmei noutros textos, revela a necessidade
da sua alteração;
Em momento
posterior, e no âmbito do Processo de Revisão Constitucional de 2004, viria a
elaborar O Projecto de Revisão Constitucional n.º 5/IX, subscrito pela Deputada
Jamila Madeira, em que era proposta a iniciativa popular de fiscalização
sucessiva da constitucionalidade por grupos de cidadãos eleitores. É carecido
de sentido que os cidadãos possam exercer a iniciativa legislativa e não possam
suscitar, sem interesse pessoal e directo, a defesa da constitucionalidade das
leis. O PS viria a abandonar esta proposta, tendo o Bloco de Esquerda vindo a
adoptar esta solução no Projecto de Revisão Constitucional n.º 4/XI.
De igual
forma me referia à alteração do sistema eleitoral para a Assembleia da
República, com a personalização da respectiva eleição, através da introdução de
círculos uninominais, sem que se beliscasse a proporcionalidade da conversão de
votos em mandatos.
Esta reforma
permitiria, a meu ver, uma maior responsabilização dos eleitos, e uma maior
aproximação entre estes e os eleitores. Poderia ser concretizada pelo duplo
voto, em que um voto serviria para a eleição uninominal, e o outro para que o
eleitor pudesse exprimir o seu voto, de forma eventualmente diversa para o
partido que recolha as suas preferências.
Com uma
compensação, na votação nacional, das distorções de proporcionalidade que
decorrem das eleições uninominais, seria assim possível termos um sistema
eleitoral personalizado que mantivesse a proporcionalidade.
Existem
outras soluções para este problema, eventualmente mais vantajosas e com menos
inconvenientes para a proporcionalidade e funcionamento do sistema político,
sobre as quais escreverei em momento oportuno.
Outra
questão abordada é a introdução de mecanismos legais de reforço da igualdade de
género na composição de listas candidatas a órgãos de soberania e aos órgãos de
autarquias locais. Tal regime veio a ser acolhido pela Lei n.º 3/2006, de 21 de
Agosto, que mereceu a aprovação do PS e do BE. Mantenho, integralmente, as
minhas reservas. Julgo que a questão da participação feminina estará resolvida
por via cultural, e não por imposição legal. Aliás, é curioso, que pouco tempo
depois de ter escrito esta moção, a liderança da Juventude Socialista foi
disputada por duas mulheres.
O referendo
local e o orçamento participativo são aqui apontados como vias para o
aprofundamento da Democracia Directa e da Democracia Participativa. A verdade,
é que o caracter não obrigatório de tais mecanismos, a para da resistência de
boa parte dos autarcas a estas inovações, tem feito destes instrumentos
verdadeiras excentricidades quanto à sua aplicação prática. Infelizmente assim
é, pois todos os actores políticos teriam a ganhar com a sua generalização…
O referendo
local ganharia especial importância para a tomada de decisões cujo impacto se
fizesse sentir para além do período de mandato dos órgãos autárquicos,
designadamente em matérias como o endividamento a longo prazo, a celebração de
contratos de parcerias público privadas ou a concessão de serviços públicos.
Esta medida teria especial impacto nas autarquias locais portuguesas, atendendo
ao ténue regime de tutela administrativa a que as mesmas estão sujeitas, e à
inexistência de mecanismos de controlo do mérito da actuação das mesmas.
Na vigência
da Constituição de 1911, o referendo local foi apresentado como solução para
colmatar a ausência da tutela administrativa de mérito. A instituição do referendo era, nas palavras de Marnoco e Souza (in Constituição
Política da República Portuguesa – Commentário”, Coimbra, F. França Amado
Editor, 1913, pp. 593 e 594), uma via para a descentralização e para a
democracia: “Esta reforma permitte realizar uma mais larga descentralização, com
todas as vantagens que dahi podem resultar, ao mesmo tempo que determina uma
fiscalização mais efficaz sobre os actos de administração local por parte do
povo”. E assim
viria a ser estabelecido pelo artigo 96.º §. 1.º da Lei n.º 88, de 7 de Agosto
de 1913.
Uma
Administração Pública aberta e participada
Tradicionalmente a Esquerda é vista como
excessivamente centralista, num modelo herdado do jacobinismo da Revolução
Francesa.
Esta
ideia, cada vez mais errada, deve ser combatida com a condução de um movimento
descentralizador da Administração Pública, com uma forte dinâmica de
participação dos administrados. O Partido Socialista há muito que assumiu esta
postura. Importa reforçar a nossa actuação neste sentido. Conduzir uma reforma
administrativa assente na transparência, descentralização, eficiência,
racionalização e participação directa do cidadão, é imprescindível para
despertar o interesse do cidadão na gestão da “Res Pública”. Num momento em que
as críticas à ineficiência e à centralização da Administração Pública atingiram
um pico máximo, o Partido Socialista deve prosseguir a política de reforma
administrativa iniciada há quatro anos.
Ao
longo desta legislatura demonstrámos o nosso empenho na descentralização
administrativa através de um conjunto de iniciativas legislativas que visaram o
reforço das Autarquias Locais e a instituição das Regiões Administrativas.
A
proposta de instituição em concreto das Regiões Administrativas foi recusada
pelo Povo Português em referendo. Exprimiu-se assim a vontade popular de não
pretender a instituição das Regiões Administrativas nos moldes e no tempo em
que lhe foi proposto. Este facto não invalida que o Partido Socialista abandone
a sua convicção nos benefícios emergentes da concretização desta reforma, devendo
amadurecer e reavaliar a sua proposta, para que num futuro longínquo seja debatida,
compreendida e aceite pelo Povo Português.
Os
portugueses foram claros neste referendo, restando agora ao Partido Socialista
desencadear uma política de descentralização nos Municípios e Freguesias. A par
desta política deverão ser desenvolvidos esforços no sentido de proceder a uma
reorganização territorial e funcional da Administração Pública Periférica do
Estado, dotando-a de uma maior uniformidade territorial, de mecanismos de
coordenação entre os diversos serviços e de uma maior racionalidade.
A
Administração Pública deverá ser ainda dotada de mecanismos de participação
democrática dos administrados, conferindo-lhes voz nas opções da administração.
Será assim possível contribuir para um maior interesse dos cidadãos e para uma
maior proximidade da actividade administrativa aos anseios dos cidadãos.
O
exemplo máximo destas medidas é o exemplo da Auto-Administração, visível nas Autarquias
Locais, Universidades ou Ordens Profissionais. Estes exemplos são positivos e
devem ser alargados, sempre que viável, a outras áreas da administração.
Nota: A administração autónoma, enquanto
fórmula de devolução de poderes à sociedade, constitui uma excelente forma de incrementar
a participação cidadã. No entanto, esta solução pode conduzir a corporativismos
com duvidosa eficácia e transparência.
A
regionalização administrativa continua hoje por concretizar. Podendo ter
evidentes benefícios decorrentes de uma gestão mais descentralizada, a ausência
de identidades regionais suficientemente fortes tem sido um obstáculo à sua concretização
com apoio popular, que desde a Revisão Constitucional de 1997 é determinante,
face à necessidade de a instituição em concreto das regiões administrativas
exigir a sua aprovação por via referendária.
Entretanto,
várias reformas do regime do associativismo municipal foram desde então levadas
a cabo, criando até mais centros de custo do que os que seriam criados pelos
projectos de regionalização até hoje apresentados. E com o inconveniente de
estas formas de organização supramunicipal não serem dotadas de órgãos directamente
eleitos, o que mina a sua legitimidade democrática.
Da mesma
forma que a Constituição admite a diferenciação das atribuições e competências entre
regiões administrativas, deveria banir a exigência da simultaneidade da sua
instituição em concreto, permitindo assim a sua instituição de acordo com a
vontade diferenciada das populações.
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