segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

"Por uma sociedade à Esquerda", 13 anos depois (III Parte - Democracia Participativa)

Sumário: Nesta terceira parte da Moção "Por uma sociedade à Esquerda" abordo os problemas da Democracia Participativa e da organização da administração pública, fazendo referência à problemática da regionalização. Os 13 anos que passaram desde a elaboração do texto demonstram, de forma clara o pouco que se fez até hoje nesta matéria, sendo claros os medos e receios da classe política no aprofundamento de mecanismos de participação cidadã.


Por uma Democracia Participativa



O alheamento dos cidadãos da actividade política é, infelizmente, um dado adquirido nas sociedades contemporâneas. Este alheamento merece da esquerda e do Partido Socialista resposta adequada, no sentido de reforçar e aprofundar a vivência democrática.



Uma política global de reforma do Estado com uma forte preocupação de dinamizar a participação cívica é uma solução credível e desejável.



A Revisão Constitucional de 1997, apesar de todas as insuficiências causadas pelo boicote da Direita Parlamentar, demonstrou o empenho do Partido Socialista em levar a cabo uma séria reforma do sistema político, consagrando medidas como a iniciativa legislativa popular, o fim do monopólio partidário nas candidaturas aos órgãos das Autarquias Locais, ou a introdução de círculos uninominais no sistema eleitoral para a Assembleia da República, num quadro de manutenção da proporcionalidade do sistema.



A revisão do sistema eleitoral para a Assembleia da República é uma forte medida de aproximação dos eleitores dos eleitos, através da criação dos círculos uninominais, devendo ser retomada pelo Partido Socialista.



A este propósito foi também proposta a introdução de um sistema de quotas para garantir uma participação minimamente igualitária de ambos os sexos nas listas. Ninguém põe em causa a necessidade de aumentar a participação das mulheres na actividade política. Este é um princípio fundamental a ser prosseguido por todos os partidos políticos. Contudo, prioritário à imposição legal de quotas, é o combate directo às causas do baixo índice de participação política feminina.



A participação feminina na actividade política em Portugal é reconhecidamente inferior à média europeia. Tal facto deve-se ao atraso cultural de que fomos e ainda somos vítimas em consequência de 48 anos de isolamento e ditadura. Na maior parte dos países europeus a participação das mulheres foi um processo natural e evolutivo. O mesmo se passou em Portugal até aos dias de hoje, com a condicionante do nosso atraso. Portugal já teve uma mulher como Primeira-Ministra e candidata a Presidente da República e o número de governantes, deputados e autarcas do sexo feminino.



É fundamental investir ao máximo na mudança de mentalidades, eliminando preconceitos machistas e incutindo nas mulheres o a necessidade de participação política. Infelizmente, ainda hoje entre as mulheres dos meios rurais ou entre as mulheres menos jovens, não há receptividade feminina para a participação na vida política. Importa que este processo seja resultado de uma evolução natural de mentalidades e não de uma mera imposição legal. A imposição legal de quotas é uma medida artificial, que poderá associar uma imagem negativa à participação política feminina, na medida em que a sua participação é assegurada por imposição legal. A evolução natural da participação feminina é determinante para a sua solidez e credibilização.



Sempre foi apanágio do Partido Socialista a participação política feminina, podendo uma solução deste género insinuar dúvidas sobre a vontade das estruturas intermédias do Partido

Socialista no que toca à participação feminina. Acreditamos convictamente no papel relevante das mulheres na actividade política, lutamos e lutaremos em nome da sua presença efectiva.



O fim do monopólio dos partidos políticos nas candidaturas aos órgãos das Autarquias Locais, consagrado na última revisão constitucional, possibilita candidaturas independentes aos órgãos do Município, representando um avanço significativo nas formas de participação política do cidadão. É agora importante regulamentar este direito, assegurando a sua exequibilidade nas próximas eleições autárquicas.



Outra inovação da última revisão constitucional foi a iniciativa legislativa popular, possibilitando assim a participação directa do cidadão na actividade legislativa. Esta reforma constitucional carece de urgente regulamentação no sentido de possibilitar o mais rápido possível a efectivação deste direito.



Acresce ainda a necessidade de uma campanha de esclarecimento, a levar a cabo pelos órgãos de soberania e partidos políticos, por forma a incentivar o cidadão ao uso desta forma de participação.



O referendo foi pela primeira vez utilizado nesta legislatura, sendo os índices de participação inferiores ao desejado. Julgamos a prática referendária salutar como forma de aprofundar a democracia participativa. Todavia, importa encontrar formas de aumentar a participação nestes actos, sendo necessário o empenhamento crescente dos partidos políticos e de elementos de reconhecida capacidade da sociedade civil no sentido de incrementar um debate sério e abrangente em toda a sociedade, despertando assim a consciência cívica da população.



É ainda de saudar os esforços do Governo e do Partido Socialista no sentido de alargar a prática referendária à Administração Autárquica. Esta iniciativa servirá seguramente para um enraizar do instituto do Referendo no sistema político português.



Num momento em que assistimos a uma forte contestação à carga fiscal, curiosamente uma das mais baixas da União Europeia, afigura-se necessário prover para que haja um maior sentimento de retribuição do Estado ao contribuinte. Nesse sentido, entre outras medidas que não interessa aqui abordar, o Partido Socialista deve estudar e propor formas de participação do cidadão na repartição da despesa pública.



A introdução do Orçamento Participativo, uma figura onde o contribuinte pode afectar uma parte da sua contribuição fiscal a uma área de actuação da Administração Pública, deve ser ponderada pelo Partido Socialista. Desta forma será possível auscultar os anseios dos contribuintes, bem como poder criar uma maior satisfação e sentimento de retribuição no contribuinte.



A participação cívica não se esgota na reforma do sistema político, podendo ser incrementada através de uma reforma administrativa, de uma maior abertura dos partidos políticos à sociedade civil e do apoio ao associativismo.



Nota: A Democracia Participativa é um das melhores vias para o combate ao crescente desinteresse dos cidadãos pela política. Este desinteresse, resultante, sem dúvida, de uma vivência cada vez mais individualista, e também resultante da alienação ao consumo, tem, em minha opinião, um factor agravante: o excessivo formalismo e hermetismo do funcionamento da Democracia Participativa.



Com efeito, e em resultado da influencia do Contrato Social de Rousseau na construção das teorias da Democracia Representativa, verifica-se, de uma forma genérica, uma alienação periódica da nossa quota parte na soberania em favor de representantes eleitos, ou que pelo menos tenham uma legitimidade democrática mínima (refiro-me aos Governos, cuja legitimidade, pelo menos do ponto de vista formal, não resulta na esmagadora maioria das Democracias Representativas de uma legitimidade democrática directa).



A Democracia Representativa criou também mecanismos formais de limitar a participação dos cidadãos em geral, reservando todo o processo decisório, e em especial os impulsos decisórios, para os que exercem o mandato representativo. Desta forma, criaram-se condições para transformar aqueles em quem reside, de direito, a soberania, em meros espectadores do processo democrático formal no intervalo dos actos eleitorais. Claro está, que este processo em nada contribui para a aproximação dos cidadãos à Res Pública, contribuindo até para a sua incompreensão e a sua frustração com os processos democráticos.



É urgente hoje, como já era há 13 anos, introduzir mecanismos que acentuem a importância e exequibilidade da Democracia Directa, da Democracia Participativa e da Democracia Deliberativa.



Na moção, referia-me algumas janelas de oportunidade abertas pela Revisão Constitucional de 1997 que viriam a merecer, entretanto, tratamento legislativo:

a)      A possibilidade de candidaturas independentes para todos os órgãos das autarquias locais, que viria a ser estabelecida pela Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto. Apesar desta importante reforma, não se verificou um grande recurso a esta possibilidade, mantendo-se, essencialmente, um oligopólio partidário nestas candidaturas, quer seja pela complexidade dos processos de formação de listas independentes, comparativamente com a apresentação de listas por partidos políticos, quer seja pelo contínuo alheamento dos cidadãos;

b)      A iniciativa legislativa popular, que viria a ser consagrada pela Lei n.º 17/2003, de 4 de Junho, verificando-se que, desde a sua entrada em vigor, apenas foram apresentadas duas iniciativas legislativas ao abrigo deste regime, tais são as exigências formais para a sua apresentação, o que, e conforme já afirmei noutros textos, revela a necessidade da sua alteração;



Em momento posterior, e no âmbito do Processo de Revisão Constitucional de 2004, viria a elaborar O Projecto de Revisão Constitucional n.º 5/IX, subscrito pela Deputada Jamila Madeira, em que era proposta a iniciativa popular de fiscalização sucessiva da constitucionalidade por grupos de cidadãos eleitores. É carecido de sentido que os cidadãos possam exercer a iniciativa legislativa e não possam suscitar, sem interesse pessoal e directo, a defesa da constitucionalidade das leis. O PS viria a abandonar esta proposta, tendo o Bloco de Esquerda vindo a adoptar esta solução no Projecto de Revisão Constitucional n.º 4/XI.



De igual forma me referia à alteração do sistema eleitoral para a Assembleia da República, com a personalização da respectiva eleição, através da introdução de círculos uninominais, sem que se beliscasse a proporcionalidade da conversão de votos em mandatos.



Esta reforma permitiria, a meu ver, uma maior responsabilização dos eleitos, e uma maior aproximação entre estes e os eleitores. Poderia ser concretizada pelo duplo voto, em que um voto serviria para a eleição uninominal, e o outro para que o eleitor pudesse exprimir o seu voto, de forma eventualmente diversa para o partido que recolha as suas preferências.



Com uma compensação, na votação nacional, das distorções de proporcionalidade que decorrem das eleições uninominais, seria assim possível termos um sistema eleitoral personalizado que mantivesse a proporcionalidade.



Existem outras soluções para este problema, eventualmente mais vantajosas e com menos inconvenientes para a proporcionalidade e funcionamento do sistema político, sobre as quais escreverei em momento oportuno.



Outra questão abordada é a introdução de mecanismos legais de reforço da igualdade de género na composição de listas candidatas a órgãos de soberania e aos órgãos de autarquias locais. Tal regime veio a ser acolhido pela Lei n.º 3/2006, de 21 de Agosto, que mereceu a aprovação do PS e do BE. Mantenho, integralmente, as minhas reservas. Julgo que a questão da participação feminina estará resolvida por via cultural, e não por imposição legal. Aliás, é curioso, que pouco tempo depois de ter escrito esta moção, a liderança da Juventude Socialista foi disputada por duas mulheres.



O referendo local e o orçamento participativo são aqui apontados como vias para o aprofundamento da Democracia Directa e da Democracia Participativa. A verdade, é que o caracter não obrigatório de tais mecanismos, a para da resistência de boa parte dos autarcas a estas inovações, tem feito destes instrumentos verdadeiras excentricidades quanto à sua aplicação prática. Infelizmente assim é, pois todos os actores políticos teriam a ganhar com a sua generalização…



O referendo local ganharia especial importância para a tomada de decisões cujo impacto se fizesse sentir para além do período de mandato dos órgãos autárquicos, designadamente em matérias como o endividamento a longo prazo, a celebração de contratos de parcerias público privadas ou a concessão de serviços públicos. Esta medida teria especial impacto nas autarquias locais portuguesas, atendendo ao ténue regime de tutela administrativa a que as mesmas estão sujeitas, e à inexistência de mecanismos de controlo do mérito da actuação das mesmas.



Na vigência da Constituição de 1911, o referendo local foi apresentado como solução para colmatar a ausência da tutela administrativa de mérito. A instituição do referendo era, nas palavras de Marnoco e Souza (in Constituição Política da República Portuguesa – Commentário”, Coimbra, F. França Amado Editor, 1913, pp. 593 e 594), uma via para a descentralização e para a democracia: “Esta reforma permitte realizar uma mais larga descentralização, com todas as vantagens que dahi podem resultar, ao mesmo tempo que determina uma fiscalização mais efficaz sobre os actos de administração local por parte do povo”. E assim viria a ser estabelecido pelo artigo 96.º §. 1.º da Lei n.º 88, de 7 de Agosto de 1913.





Uma Administração Pública aberta e participada



Tradicionalmente a Esquerda é vista como excessivamente centralista, num modelo herdado do jacobinismo da Revolução Francesa.



Esta ideia, cada vez mais errada, deve ser combatida com a condução de um movimento descentralizador da Administração Pública, com uma forte dinâmica de participação dos administrados. O Partido Socialista há muito que assumiu esta postura. Importa reforçar a nossa actuação neste sentido. Conduzir uma reforma administrativa assente na transparência, descentralização, eficiência, racionalização e participação directa do cidadão, é imprescindível para despertar o interesse do cidadão na gestão da “Res Pública”. Num momento em que as críticas à ineficiência e à centralização da Administração Pública atingiram um pico máximo, o Partido Socialista deve prosseguir a política de reforma administrativa iniciada há quatro anos.



Ao longo desta legislatura demonstrámos o nosso empenho na descentralização administrativa através de um conjunto de iniciativas legislativas que visaram o reforço das Autarquias Locais e a instituição das Regiões Administrativas.



A proposta de instituição em concreto das Regiões Administrativas foi recusada pelo Povo Português em referendo. Exprimiu-se assim a vontade popular de não pretender a instituição das Regiões Administrativas nos moldes e no tempo em que lhe foi proposto. Este facto não invalida que o Partido Socialista abandone a sua convicção nos benefícios emergentes da concretização desta reforma, devendo amadurecer e reavaliar a sua proposta, para que num futuro longínquo seja debatida, compreendida e aceite pelo Povo Português.



Os portugueses foram claros neste referendo, restando agora ao Partido Socialista desencadear uma política de descentralização nos Municípios e Freguesias. A par desta política deverão ser desenvolvidos esforços no sentido de proceder a uma reorganização territorial e funcional da Administração Pública Periférica do Estado, dotando-a de uma maior uniformidade territorial, de mecanismos de coordenação entre os diversos serviços e de uma maior racionalidade.



A Administração Pública deverá ser ainda dotada de mecanismos de participação democrática dos administrados, conferindo-lhes voz nas opções da administração. Será assim possível contribuir para um maior interesse dos cidadãos e para uma maior proximidade da actividade administrativa aos anseios dos cidadãos.



O exemplo máximo destas medidas é o exemplo da Auto-Administração, visível nas Autarquias Locais, Universidades ou Ordens Profissionais. Estes exemplos são positivos e devem ser alargados, sempre que viável, a outras áreas da administração.



Nota: A administração autónoma, enquanto fórmula de devolução de poderes à sociedade, constitui uma excelente forma de incrementar a participação cidadã. No entanto, esta solução pode conduzir a corporativismos com duvidosa eficácia e transparência.



A regionalização administrativa continua hoje por concretizar. Podendo ter evidentes benefícios decorrentes de uma gestão mais descentralizada, a ausência de identidades regionais suficientemente fortes tem sido um obstáculo à sua concretização com apoio popular, que desde a Revisão Constitucional de 1997 é determinante, face à necessidade de a instituição em concreto das regiões administrativas exigir a sua aprovação por via referendária.



Entretanto, várias reformas do regime do associativismo municipal foram desde então levadas a cabo, criando até mais centros de custo do que os que seriam criados pelos projectos de regionalização até hoje apresentados. E com o inconveniente de estas formas de organização supramunicipal não serem dotadas de órgãos directamente eleitos, o que mina a sua legitimidade democrática.



Da mesma forma que a Constituição admite a diferenciação das atribuições e competências entre regiões administrativas, deveria banir a exigência da simultaneidade da sua instituição em concreto, permitindo assim a sua instituição de acordo com a vontade diferenciada das populações.

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