Sumário:
A realidade política europeia, quer seja quanto às suas políticas e ao
funcionamento das suas instituições estão na ordem do dia. Tal como na ordem do
dia estão as votações nas eleições do passado fim-de-semana. Tive a felicidade,
nesse momento, de estar em contacto com a realidade alemã e com cidadãos
europeus de outros países, bem como de ler “O eterno retorno do fascismo” de
Rob Riemen. Fiquei inquieto com o que apreendi e com os resultados eleitorais.
A ascensão da extrema-direita e a facilidade de penetração de discursos
simplistas, e muitas vezes de ressentimento impõem uma reflexão sobre a Europa
e a Esquerda. Mas também sobre o Bloco de Esquerda, reflexão que dedico a quem
de muito discordei: Miguel Portas. Sim, porque a Grande Esquerda se constrói
com a diferença!
I - Estive este fim de semana (de 4 a 6 de Maio)
numa reunião promovida por Eurodeputados do Die Linke, o partido da
esquerda alemã, e pela REALPE (Reseau d’éllues et
d’autorités locales progressistes d’Europe), subordinada ao tema “Then sell
your monuments! The collapse of municipal finance from the European
perspective”.
Nesta reunião apresentei uma comunicação sobre as
finanças locais portuguesas, tal como outros autarcas presentes o fizeram em
relação aos seus países, verificando-se uma identidade de problemas do poder
local por essa Europa fora, face à crise económica e financeira que nos assola.
Em cada uma das intervenções era difícil que cada um de nós não identificasse
problemas comuns com os vividos no seu país.
Para mim, esta foi a prova inequívoca de uma
grande convergência dos Povos da Europa, quer nos objectivos almejados, quer
nos problemas vividos. Mas este tema, cujo interesse e riqueza levaria a uma
grande reflexão, não é o assunto central desta reflexão. Pretendo antes
partilhar convosco uma gratificante experiência que me desafiou para uma outra
reflexão: a Europa, a democracia e o papel das esquerdas.
Este encontro realizou-se em Herne, uma cidade
alemã de cerca de 165 000 habitantes, situada no Länder de Nordrhein-Westfalen, na parte ocidental da
Alemanha. Esta cidade, absolutamente desconhecida da maioria das pessoas, é
também uma cidade com muito pouco para atraír turistas: trata-se de uma antiga
cidade mineira (minas de carvão), economicamente deprimida e sem nenhum ponto
de grande interesse turístico. Uma típica cidade cinzenta, como o são as
cidades da Europa Central, mas que reservava muitas surpresas para este
visitante, que ia despido da sua habitual condição de turista por estas paragens.
O caracter desta viagem acabou por me proporcionar
o contacto com os locais e pessoas da Alemanha quotidiana, da Alemanha do
trabalho, e também da Alemanha da crise. Desde logo a ausência de habitações
distintas, como por aqui sucede nas grandes cidades: uma grande uniformização
na construção e no respectivo aspecto. Depois, um parque automóvel semelhante
(senão pior) e tão envelhecido como aquele que vemos em Portugal.
Mas, o que sobretudo me despertou a atenção, foram
os problemas comuns com Portugal (e com o resto da Europa), especialmente nos
mais jovens: desemprego, baixos salários e precariedade. Para além dos
elucidativos relatos que me foram feitos pelos membros do Die Linke local,
resolvi, juntamente com o Jean-Paul Plassard, um velho militante do PCF e
presidente da REALPE tirar a prova dos nove. Na noite de sábado, num convívio
com os militantes a activistas do Die Linke num bar local, perguntámos ao
barman, dos seus 20 a 30 anos, se apenas trabalhava ali. A resposta foi
demolidora: o rapaz disse-me estar cansado, e que havia já trabalhado nesse dia
num clube de video, vindo ali fazer mais umas horas extra. E quando lhe
perguntei quanto ganhava, ele respondeu-me 6 euros à hora, no clube de vídeo, e
10 euros à hora no bar.
A minha surpresa foi grande, tão grande como a
genuína indignação do Jean-Paul Plassard, que acompanhei. Numa intervenção à
tarde, e na sequência dos relatos feitos na reunião, Jean-Paul Plassard dizia:
«Il ny a pas une Europe des pays riches et des pays pauvres. Il y a, sourtout,
une Europes des personnes riches et une Europe des persones pauvres.».
Esta é a clara consequência de anos e anos de más
políticas, de políticas monetaristas e de desvalorização das condições de
trabalho e de direitos sociais que, curiosamente, e por razões diversas das que
me animam, começaram a ser implementados na própria Alemanha no século XIX por
Otto von Bismark!
A destruição do Estado Social e o acentuar das
desigualdades é uma realidade que nos toca a nós Europeus colectivamente, e
independentemente das diferenças e variações ditadas pelas condições de cada
país.
E esta realidade faz-nos forçosamente concluir pela
ausência de verdadeiras políticas europeias, sendo que as que existem estão
divorciadas, de forma clara, da solideriadade entre povos e países. Mas pior,
esta apreensão da realidade alemã levou-me a concluir que as próprias posições
de muitos estados no Conselho da Europeu revelam, afinal, um divórcio com a
solidariedade para com os seus próprios Povos!
II – A crise económica e financeira da União
Europeia resulta, também, da aplicação de um vasto conjunto de políticas cuja
legitimidade democrática é diminuida. Desde logo, pela independência do Banco
Central Europeu, cuja legitimidade democrática é indirecta, e muito distanciada
dos órgãos nacionais e europeus dotados de legitimidade democrática directa.
Mas também as decisões tomadas no âmbito do Conselho Europeu são dotadas de
legitimidade democrática indirecta (a maioria dos membros resultam de
legitimidade indirecta do voto popular, pois são emanação dos respectivos
parlamentos).
Como se não bastasse a ausência de legitimidade
democrática directa, de resto compreensível face à ausência de um caracter
federal da União Europeia, a linguagem das deliberações e das respectivas políticas
de execução é um a linguagem hermética, pouco acessível à generalidade dos
cidadãos da União Europeia. E assim se vão tomando decisões, cujo objecto e
alcance é determinante para a vida quotidiana dos cidadãos da União Europeia...
A linguagem excessivamente técnica e
incompreensível para o cidadão comum que é particada pela burocracia da União
Europeia. De facto, as políticas da União Europeia, em especial os fundos e
incentivos comunitários, são desenhados numa estranha linguagem de siglas e
termos técnicos, que mais não são que verdadeiras cifras para o cidadão e para
os agentes económicos. Como consequência, desenvolveu-se o domínio da aplicação
das políticas comunitárias e respectivos instrumentos por um grupo de técnicos,
que actuam à margem dos cidadãos e agentes económicos.
A este afastamento institucional dos órgãos da
União Europeia das opiniões públicas e dos cidadãos, o que dificulta o
respectivo escurtínio pelos mesmos, soma-se uma reduzida atenção mediática ao
desempenho do único órgão da União Europeia eleito por sufrágio universal e
directo: o Parlamento Europeu. Por tudo isto, não é de estranhar o elheamento
dos cidadãos, objectivamente traduzido nas elevadas taxas de abstenção nas
eleições para o Parlamento Europeu.
As competências dos órgãos da União Europeia, em
áreas como a política monetária, a política comercial, a política agrícola, a
política industrial, e até na política externa e de segurança, com uma
influência directa e imediata na vida e decisões dos cidadãos e agentes
económicos faz do aprofundamento da democracia no projecto europeu um
imperativo ético. E esse aprofundamento tem de passar inevitavelmente por um
reforço da integração europeia, mas um reforço acompanhado por uma maior
imediação das decisões relativamente às populações e por um reforço da
publicidade e das possibilidades de escrutínio das decisões pelos cidadãos
europeus.
Sem que se atue neste sentido continuaremos, dentro
da União Europeia, a jogar perigosamente na responsabilização de Povos pelo
insucesso de políticas europeias, em vez de responsabilizarmos os decisores.
Continuaremos a ver surgir vozes contra a Alemanha, ou contra a Grécia e Portugal,
em vez de vozes contra os respectivos Governos. Um caminho perigoso para o
projecto Europeu...
III – A minha estadia em Herne coincidiu com a
campanha eleitoral para o parlamento do Länder de Nordrhein-Westfalen.
Em conversa com a Veronica, conselheira municpal de Herne, eleita pelo Die Linke, vim a saber que um
dos temas lançados para a campanha era o fim ou redução dos apoios aos Lander
da ex-RDA.
Era algo de que me já tinha apercebido em
anteriores visitas à Alemanha, mais concretamente a Hamburgo. Havia alemães que
vinham criando uma aversão ao financiamento à União Europeia e à ex-Alemanha de
Leste. Entendiam que tal financiamento era excessivo e lhes desviava recursos
fundamentais para o seu próprio desenvolvimento e economia. Mas olvidavam,
também, os benefícios que lhes trazia tal ajuda, ao estimular económicamente os
beneficiários e ao potenciar, por essa via, a sua própria produção! Mas isto
passava-se em Hamburgo, onde um partido conotado com movimentos neo-nazis, o
Partido da Lei e da Ordem Ofensiva teve 19,4% dos votos nas legislativas
estaduais em 2001!
O espantoso no caso do Länder de Nordrhein-Westfalen
é que tal assundo é lançado para o debate com a conivência do SPD, o partido
social-democrata alemão, integrado na Internacional Socialista!
Nem de propósito tinha devorado na viagem um livro
magnífico, «O Eterno retorno do
fascismo», de Rob Riemen, um filósofo holandês, cuja leitura vivamente
recomendo. E, a este propósito, não posso deixar de o citar:
«A técnica usada é identica em toda a
parte: um líder carismático, populista, para mobilizar as massas; o seu próprio
grupo é sempre vítima (das crises, das elites ou dos estrangeiros); e o
ressentimento orienta-se sempre para um« inimigo». (....) O contexto em que
esta forma de política pode dominar é o de sociedade de massas afectada por uma
crise que ainda não aprendeu as lições do Século XX.»[1]
Salvaguradadas as devidas distâncias, esta
estratégia de por alemães contra alemães e europeus contra europeus com base em
argumentos básicos e lineares não deixa de ser uma perigosa técnica e um
retrocesso civilizacional. E não pode deixar de escandalizar, quando vem de um
partido com a história e tradição do SPD,
não obstante a sua descaracterização nos últimos anos.
Ora, esta realidade, merece ser analisada no âmbito
dos resultados eleitorais deste fim de semana ...
IV – Já no aeroporto de Frankfurt, e com este comportamento
do SPD bem presente, tive
conhecimento dos resultados eleitorais para o parlamento do Länder de Schleswig-Holstein, para a Presidência da
República Francesa e para o Parlamento da Grécia. Cada um, à sua maneira suscitou-me
inquietações.
A vitória de François Hollande, candidato do PSF, que não foi numericamente
expressiva, bem como o expressivo resultado na primeira volta obtido por
Jean-Luc Mélechon, candidato da Front de Gauche (11,11 % dos votos), não nos
podem fazer olvidar o resultado registado na primeira volta destas eleições por
Marine Le Pen, candidata da Front
National, partido de extrema-direita e que obteve (numas eleições com a
taxa de participação de 79,47% dos eleitores inscritos) 17,9% dos votos expressos,
numa total de 6 421 773 votos! Com um
discurso fortemente securitário, e xenófobo, conseguiu condicionar na 2.ª volta
o discurso do Presidente derrotado Nicolas Sarkozy, que não tentou deixar de
tentar captar este eleitorado.
Os resultados na
Grécia, que tiveram o condão de demonstrar que há democracia que resiste à
austeridade e à Troika, com uma votação maioritária dos partidos que não apoiam
o programa de austeridade imposto ao país, não deixam de exibir semelhante
contradição. Se o Syrisa obteve uma votação fantástica de 16,78% (triplicou a sua
última votação), registando-se ainda uma votação de 6,11% na Esquerda
Democrática (cisão do Syrisa) e de 8,48% no KKE
(Partido Comunista da Grécia), a verdade é que a formação Aurora Dourada (Neo
Nazi e que dispõe de milícias populares que lhe são próximas) obteve 6,97% dos
votos!
Estas eleições
vieram demonstrar receptividade dos eleitorados para mensagens eminentemente
fascistas e intolerantes, facto que não pode ser encarado como uma avestruz o
faria: enterrando a cabeça na areia, ou como o foi a peste no romance de Albert
Camus “A peste”. Há que evitar os erros cometidos por todas as forças
políticas em Itália e na Alemanha, quando Mussolini ganhou com cerca de 25% dos
votos e Hitler com pouco mais que 30%[2]!
Já para o parlamento do Länder do Schleswig-Holstein, verificou-se uma
votação residual no Die Linke,
que perdeu a sua representação parlamentar e passou de 6% dos votos em 2009 para
2,2% em 2012, ao passo que o Partido
Pirata passou de 1,8% em 2009 para 6,4% em 2012.
Nesta eleição, o factor preocupante não é a
ascenção de uma força de extrema-direita, mas sim a votação num partido cujo
objectivo programático é parcial (a desregulação da internet e o livre acesso
aos conteúdos abrangidos por direitos de autor), com uma transferência quase
directa de voto para este partido da votação do Die Linke.
Este não deixa de ser um sinal preocupante de
deambulação de algum eleitorado em função de propostas de manifesta simplicidade,
com objectivos apartados e parciais, em deterimento de forças políticas que
ofereçam soluções políticas mais abrangentes. Talvez por falta de identificação
de algumas camadas da população, em especial as mais jovens, com discursos
políticos que lhes são oferecidos ou, como prefiro acreditar, de falhas de
comunicação ditadas, por vezes, por uma linguagem opaca e pouco atraente.
É certo que uma linguagem simplista é a arma de
partidos fascistas e de partidos pouco concistentes programáticamente, mas não
é menos verdade que urge responder a este desafio que é posto à Esquerda, e
também à União Europeia, atentos os discursos nacionalistas e de intolerãncia
que atacam todo o processo de construção europeia.
V - Esta demanda de novos caminhos, em especial no
confronto ideológico e programático, bem como no campo comunicacional impõe-se
à Esquerda. Em Portugal impõe-se este debate, particularmente no Bloco de
Esquerda. E este é um debate muito vasto, que não pode ter aqui lugar. Mas é um
debate que urge e para o qual quero contribuir!
Os partidos socialistas e sociais-democratas na
Europa descaracterizaram-se desde a queda do Muro de Berlim, em 1989. Talvez por
ter desaparecido a tensão também ideológica da Guerra Fria, estes partidos, e
as sociedades europeias, deixaram de estar pressionados pela necessidade de
equilíbrio entre capital e trabalho.
Progressivamente estes partidos imolaram-se às
políticas de desregulação económica e financeira, de prevalência dos mercados
e, mais timidamente, de desmantelamento do Estado Social.
Com esta atitude dos partidos socialistas e sociais-democratas,
acentuou-se o desequilíbrio entre os mais fortes e os mais fracos: nas relações
laborais, no acesso ao crédito ou nas relações de consumo, entre tantas
outras...
Inevitavelmente estas políticas ameaçam os próprios
pressupostos do liberalismo, e põem a nu a maior fragilidade do modelo das leis
do mercado: trata-se afinal, de uma utopia tão grande como o comunismo, e é
igualmente capaz de produzir totalitarismos (sob a capa de liberdade) tão
perniciosos como os apontados às experiências de socialismo real.
E é por isso que acredito na emergência da Grande
Esquerda, de que Miguel Portas tantas vezes falava. Como disse aquando da sua
partida, entre nós havia grandes diferenças de opinião, estruturais e
conjunturais, mas julgo que as diferenças necessárias justamente para ajudar à
construção dessa Grande Esquerda! E mesmo com essas diferenças, não podia
deixar de olhar para esta reflexão como um tributo ao grande Homem de Esquerda
e Europeu que o Miguel Portas foi.
Ventosa, 9 de Maio de 2012
Rui Costa
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