I - No dia 9 de Março de 2016, Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa, perante o Plenário da Assembleia da República, tomava posse como Presidente da República, firmando o compromisso na forma constitucionalmente prescrita no artigo 127.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa: “Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa”.
O Presidente da República é um dos garantes da Constituição, cabendo-lhe promulgar, vetar e suscitar a fiscalização preventiva e sucessiva da constitucionalidade de actos legislativos ou declarar o estado de sítio ou de emergência que pode, excepcionalmente, condicionar o exercício de direitos, liberdades e garantias.
O estatuto constitucional do Presidente da República sendo generoso quanto à sua imunidade para responder em matéria criminal (artigo 130.º da Constituição da República Portuguesa), imunidade que se percebe em nome da estabilidade do mandato de um órgão vital ao funcionamento do nosso sistema político, impõe também algumas restrições ao titular do cargo no exercício do mandato.
Nos termos do artigo 129.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, uma de tais restrições é a proibição de ausência do Presidente da República do território nacional sem o assentimento da Assembleia da República ou da sua Comissão Permanente (um órgão vicário da Assembleia da República que funciona fora do período de funcionamento efectivo da Assembleia da República ou durante o período em que ela se encontrar dissolvida – artigo 179.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).
Esta restrição, que não abrange os casos de passagem em trânsito ou de viagem sem carácter oficial de duração não superior a 5 dias (excepcionados pelo artigo 129.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), tem como consequência para a sua violação, de pleno direito, a perda do cargo (artigo 129.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa).
II - Poderá parecer estranha esta necessidade de assentimento da Assembleia da República (ou da sua Comissão Permanente) para a ausência do Presidente da República do território nacional, mas a mesma tem todo o sentido, atendendo ao facto de este representar a República Portuguesa e de a sua eventual ausência e sequestro no estrangeiro poder comprometer o funcionamento do sistema político, considerando que a destituição do Presidente da República é dificultada – e bem – pela nossa Constituição.
Imagine-se que o Presidente da República decidia fazer uma visita oficial a um País com o qual Portugal estivesse de relações diplomáticas cortadas, como foi o caso da Indonésia, legitimando tacitamente com a sua presença a então ocupação ilegal de Timor-Leste…
Sendo certo que há quem afirme que a motivação para esta disposição constitucional se prende com a ida, em 1807, da família Real para o Brasil, como é o caso de JORGE MIRANDA (in JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, Coimbra Editora, 2006, Coimbra, pág. 362), a verdade é que o artigo 129.º da Constituição da República Portuguesa tem, como vimos, outros fins.
Acresce que a própria Constituição da República Portuguesa estabelece como sanção para a violação deste preceito, “de pleno direito, a perda do cargo” (artigo 129.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa).
III – O actual Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, é um reputado constitucionalista e não pode ignorar a gravidade da violação do artigo 129.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, devendo também ter presente o compromisso por ele prestado na tomada de posse, na fórmula constitucionalmente prescrita: “Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa”.
É fundamental que o Presidente da República inspire nos portugueses a confiança inerente às suas funções de garante da Constituição, não podendo ceder à primeira emoção a uma violação, para mais tão grave da nossa Constituição.
Este não é o momento de apreciar ou tomar posição quanto ao frenesim de Sua Excelência, o Senhor Presidente da República perante catástrofes e mortes em circunstâncias dramáticas. Este é sim o momento de avaliar a respectiva conduta à luz das suas funções e competências constitucionalmente consagradas.
Ora, é neste ponto que o frenesim atropelou a Constituição, coma visita oficial de Sua Excelência, o Senhor Presidente da República a Barcelona, para assistir à Santa Missa e prestar homenagem às vítimas dos hediondos atentados nas ramblas.
Marcelo Rebelo de Sousa viajou sem o consentimento do Plenário da Assembleia da República ou da sua Comissão Permanente, que a acreditar no Expresso (http://expresso.sapo.pt/politica/2017-08-21-Marcelo-nao-teve-autorizacao-do-Parlamento-para-ir-a-Barcelona.-Mas-ninguem-se-zangou ), só ocorrerá em Setembro.
Entretanto, o Senhor Presidente da Assembleia da República, a fazer fé no Expresso, com a anuência de todos partidos com assento parlamentar, aceitaram esta situação. Ora, como só o Presidente da Assembleia da República pode requerer ao Tribunal Constitucional a verificação da perda do cargo de Presidente da República nestas circunstâncias (artigo 90.º, n.º 1 da Lei de Orgânica e Processo no Tribunal Constitucional), o problema está aparentemente resolvido.
Tudo isto só lembra aquela rábula relativa ao aborto dos “Gato Fedorento”: “É proibido? Sim! O que acontece? Nada!”.
Sublinhe-se que, com esta atitude, todos os envolvidos trataram de criar um novo regime de excepção, desta vez à própria Constituição da República Portuguesa
IV – Todo este episódio representa, de certa forma, o atravessar de um “Rubicão”, uma fronteira do Estado de Direito para um estado de necessidade, aliás indiciado pelas fontes da notícia do Expresso: «“Para momentos excecionais, procedimentos excecionais”, diz fonte oficial do gabinete do presidente da Assembleia, justificando o "mecanismo informal de decisão" a que se recorreu para aprovar a viagem.».
É agora a todos lícito questionar sobre o que será a actuação dos responsáveis políticos em caso de uma calamidade acompanhada de grande comoção. Tudo isto não podia ter acontecido. E muito menos com a anuência de quem até agora fez da Constituição da República Portuguesa um elemento central do discurso na defesa de todos quantos foram fustigados pela austeridade.
Em matéria de princípios não pode haver excepções, muito menos com a justificação de eventuais incompreensões pela população ou em nome do que se pensa ser a vox populi. De outra forma legitimamos quem defenda que se queimem os incendiários amarrados a um pinheiro.